Margarita e o Mestre
Michail Bulgakov



 


"Margarita e o Mestre" na terra como no ar,
e a arder

Quarta-feira, 21 de Agosto de 2002, Por ALEXANDRA LUCAS COELHO

O romance-total de Mikhail Bulgakov, escrito em segredo, e interdito durante quase 30 anos, põe um diabo fascinante a virar a Moscovo de Estaline do avesso, reescreve a Paixão de Cristo e faz de Margarita o verdadeiro Fausto, a merecer vida eterna. E depois da vida eterna, desce à rua para verificar como o homem - esse cidadão - continua na véspera dos amanhãs que cantam.

"Margarita e o Mestre" nasceu como um "romance sobre o diabo". Era assim que Bulgakov lhe chamava, quando as personagens que acabaram por dar nome ao livro ainda nem tinham sido concebidas. E foi assim que Bulgakov lhe chamou, numa célebre carta a Estaline, a 28 de Março de 1930, em que descreve a sua situação como escritor continuamente atacado e banido pela crítica oficial: "Não são apenas as minhas obras do passado que estão arruinadas, mas também os trabalhos do presente e do futuro. Pessoalmente, com as minhas próprias mãos, atirei para o fogão o esboço de um romance sobre o diabo (...)".

Esta carta (a que Estaline respondeu com um telefonema) assinala a entrada na clandestinidade de "Margarita e o Mestre". Porque se Bulgakov não estava exactamente a mentir ao Pai dos Povos - de facto, o primeiro esboço desse "romance sobre o diabo", escrito em 1928, fora queimado pelo autor -, desde a Primavera de 1929 que trabalhava numa outra versão do mesmo projecto.

Ou seja, quando Bulgakov escreveu a Estaline, a nova versão do que veio a ser "Margarita e o Mestre" existia já, em segredo, há cerca de um ano, e em segredo permaneceu, nos onze anos seguintes, até às últimas correcções, nas vésperas da morte do autor.

Ao longo desses onze anos, de 1929 a 1940, em Moscovo - a capital do império que triunfava sobre deus e o diabo com crescente capacidade persuasiva (vigilância, delação, censura, prisão, exílio, execução em massa) -, Bulgakov vive em apartamentos modestos, quase sempre sem dinheiro, e sabendo que não terá uma vida longa (o pai morrera de uma doença hereditária nos rins, que o vitimará também a ele).

Proibem-no de sair da URSS para visitar os irmãos exilados em Paris. A crítica oficial escarnece das suas peças de teatro - fenómenos de grande popularidade, com casas cheias no mítico Teatro de Arte de Moscovo, entre 1926 e 1929 -, limita-as a curtas séries de representações ou tira-as de cena, não autoriza a publicação das suas obras, denuncia o "bulgakovismo" como um vírus burguês, decididamente pernicioso.

É contra tudo isto, apesar de tudo isto - portanto: também por tudo isto - que Bulgakov escreve "Margarita e o Mestre". Noite após noite, muito intensamente sobretudo entre 1932 e 1936, quando estrutura o essencial da obra que hoje podemos ler.

Não sabe se alguma vez publicará o romance. Mais, duvida que alguma vez o venha a publicar - e os pouquíssimos amigos que vão lendo excertos duvidam ainda mais. Têm razão. Bulgakov morrerá duas semanas depois das últimas emendas e a sua mulher Elena demorará 30 anos a conseguir a publicação em livro (depois de uma versão censurada ter aparecido em 1966/67 na revista "Moskva").

O espantoso é que destes onze anos tenha resultado uma obra tão viva - simultaneamente corrosiva, fantástica e lírica -, desprendida do mais elementar maniqueísmo. O "romance sobre o diabo" veio a ser um romance-total, com os pés tanto na terra como no ar, e a arder. Põe um diabo fascinante a virar a Moscovo de Estaline do avesso, reescreve a Paixão de Cristo e faz de Margarita o verdadeiro Fausto, a merecer vida eterna. E depois da eternidade, desce à rua para verificar como o homem - esse cidadão - continua na véspera dos amanhãs que cantam.

Os dias da Paixão

A acção de "Margarita e o Mestre" concentra-se nos dias que antecedem o domingo de Páscoa. É véspera de Páscoa na Moscovo dos anos 30 (onde o romance abre e fecha, e se detém mais tempo) e é véspera de Páscoa na Jerusalém do século I d. C, antes da morte de Cristo (onde acontecem alguns capítulos, que vão sendo intercalados na narrativa).

No centro histórico de Moscovo, no Parque do Lago do Patriarca, um poeta medíocre e um dirigente da MASSOLIT (sigla irónica, que significa literatura de massas, parodiando as associações de escritores do regime) discutem a não existência de Cristo. Em rigor, o culto dirigente esclarece o ignorante poeta sobre a óbvia não existência de Cristo.

Está dada a deixa para o demo se manifestar. Pois negar Cristo - o bem - é negá-lo a ele - senhor do mal. E na figura de um elegante mágico, Woland, de sua graça, o diabo aparece no banco ao lado, dominando rapidamente a conversa. A propósito das provas da existência de Deus, conta, descontraído, um seu pequeno-almoço com Kant, e passa a outra lembrança mais antiga: a do frente-a-frente entre Pilatos e Ieshua Ha-Nozri (Jesus de Nazaré).

Recuamos, pois, 1900 e tantos anos, até Jerusalém, para acompanhar o relato do diabo.

Neste primeiro fragmento de sopro bíblico, tal como nos restantes que a seguir surgirão, Jesus surge como uma figura suave, cândida, algo fugidia (crucificado sem pregos, sem espinhos, sem fel e sem relato da ressurreição). Bulgakov ocupa-se mais, e com maior complexidade, de Pilatos - cuja culpa, cuja cobardia, dois dos temas centrais do livro, reencontraremos antes do desfecho final (que não cabe aqui revelar).

De volta a Moscovo, travamos conhecimento com a versátil corte do diabo, a saber, dois cavalheiros algo repulsivos, um grande gato insolente e uma ruiva toda nua. Mais não carece o metafísico Woland para lançar a materialista Moscovo num caos: carecas descobertas, amantes ao léu, divisas estrangeiras caindo do céu como maná, um festim de mentiras e traições, homens transformados em porcos, em vampiros, equipas de funcionários perdendo literalmente a cabeça.

Woland sabe que o sonho comanda a vida, e basta-lhe estalar os dedos. Com que sonham os cidadãos? Com rublos, divisas, roupa nova, sapatos e que os parceiros de apartamento desapareçam no quinto dos infernos. Uma vidinha melhor, à cautela, pela calada, e que a milícia não veja.

É das tropelias desta corte de saltimbancos, narradas com um humor negro minucioso, que emerge a sátira política e social que "Margarita e o Mestre" também é, e onde ainda hoje são detectáveis inúmeras referências a nomes de pessoas e organizações reais, que originam por sua vez inúmeras tentativas de interpretação simbólica.

E onde estão Margarita e o Mestre durante a aparição de Woland? Em Moscovo. O vulnerável e desistente Mestre, numa clínica psiquiátrica, depois de ter queimado um romance sobre Pôncio Pilatos e Cristo, e fugido da sua devotada amante Margarita. Ela, em casa, ainda mulher de um homem que não ama, sem desistir do Mestre e de recuperar o manuscrito.

A segunda parte do romance voa velozmente para o fantástico. Invertendo o mito de Fausto, Bulgakov põe Margarita, a sem-medo, a oferecer a sua alma ao diabo para reencontrar o amado. Woland, que precisa de uma anfitriã para o grande baile satânico de sexta-feira - um sabbath de bruxas -, aproveita a oportunidade.

Sem desvendar o destino dos dois amantes, adiantemos apenas que Margarita consegue recuperar o manuscrito. É o próprio diabo que lhe diz: "Os manuscritos não ardem."

E aqui, detenhamo-nos para duas digressões pela biografia de Bulgakov que reforçam o carácter de testamento que "Margarita e o Mestre" também tem.

A citação "os manuscritos não ardem" floresceu na URSS da perestroika, quando no final dos anos 80 reapareceu parte do diário dos anos 20 que Bulgakov queimara com as próprias mãos em 1929. A polícia política levara-o, numa revista a sua casa, em 1926, e o escritor jurou nunca mais escrever um diário. Em 1929, o documento foi devolvido, e Bulgakov deitou-o ao fogão - tal como o Mestre, no romance. Mas os vigilantes do Estado haviam guardado uma cópia, que foi encontrada nos arquivos do KGB, décadas depois.

Quanto a Margarita - que, muito mais do que o Mestre, é a verdadeira força do romance, aquela que tem coragem, quando "a cobardia é o pior dos defeitos" -, é claramente inspirada na extraordinária figura que parece ter sido Elena Shilovskaia, a terceira senhora Bulgakov.

Descrita como uma personagem magnética, com uma força e um calor humano raros, Elena foi amiga e inspiradora de vários artistas, entre os quais Anna Akhmátova (que lhe ofereceu o poema dedicado a Bulgakov) ou Sviatoslav Richter - o magistral pianista dizia que para se saber quem era Elena bastava ler "Margarita e o Mestre".

Tal como a Margarita e o Mestre do romance, Elena e Bulgakov eram ambos casados, quando se conheceram, na Primavera de 1929. Tal como Margarita, Elena tinha uma vida mais que desafogada, ao lado de um marido "nobre e maravilhoso". E tal como Margarita pelo Mestre, apaixonou-se à primeira-vista por Bulgakov, conforme testemunhou muito anos mais tarde: "Nós éramos o que se costuma chamar uma família feliz: um marido com um alto cargo, dois filhos lindos. Em geral, tudo corria bem. Mas quando conheci Bulgakov, soube que era o meu destino (...). Foi um amor súbito, invulgarmente súbito, pelo menos para mim, e duraria toda a minha vida."

Além da morte de Bulgakov. "Margarita e o Mestre" também é isso. Uma história de amor que se solta da morte. Renasceu das cinzas - literalmente, as do primeiro esboço - com o encontro entre o escritor e Elena, foi escrito durante os onze anos que a relação durou e chegou até nós porque ela lutou 30 anos pela sua publicação. Os manuscritos só ardem quando alguém desiste.