Tiragem de 100 mil exemplares
“A obra ao negro”, de Marguerite
Yourcenar
Por Luís Miguel Queiroz
O percurso de Zenão, no pano de fundo
da Europa da primeira metade do século XVI. Uma obra-prima
em nada inferior a “Memórias de Adriano”,
o romance que celebrizou Yourcenar.
Poucos dias antes de rebentar, em Paris, o
movimento de contestação estudantil de Maio
de 1968, aparecia nas livrarias francesas um livro intitulado
“A Obra ao Negro”. No meio de uma tal agitação,
que tomava as ruas e monopolizava os “media”,
parecia haver bons motivos para duvidar do êxito de
um romance de fundo histórico, cuja acção,
narrada numa escrita exigente e quase anacronicamente “clássica”,
decorria no distante século XVI.
A própria autora, Marguerite Yourcenar,
numa carta dirigida, em 1964, ao editor Gaston Gallimard,
confessava-se apreensiva: “Pensei escrever as ‘Memórias
de Adriano’ para dez pessoas, e enganei-me. Creio neste
momento terminar ‘A Obra ao Negro’ para dez pessoas
e é muito possível que não me engane.”
Na verdade, voltou a enganar- se. Em apenas
dois meses, a Gallimard esgotou duas tiragens, num total de
40 mil exemplares. Os críticos, descontadas raríssimas
excepções, não lhe pouparam elogios.
Muitos falaram de “obra-prima”. Apenas um ou outro
se lamentou de “falta de calor”. O que talvez
possa ser lido como um involuntário elogio, já
que é justamente pela sua deliberada e impiedosa rasura
de todo o sentimentalismo que este livro consegue emocionar
tão profundamente os seus leitores.
Constituindo um espantoso fresco da Europa
do século XVI — das intrigas políticas
às querelas religiosas, da filosofia à vida
quotidiana, da cultura literária às discussões
científicas —, “A Obra ao Negro”
é também a história pessoal de Zenão,
o filho bastardo de um grande negociante de Bruges, cujo pai,
que não chega a reconhecê-lo, era ainda aparentado
com a poderosa família dos Médicis.
Médico, filósofo e alquimista,
podem ver-se na vida de Zenão, embora o romance não
o assuma expressamente, as etapas da Grande Obra alquímica,
com os seus momentos de decantação, dissipação
e sublimação. O objectivo da alquimia, reclama
a tradição, era o de transformar o próprio
alquimista. A transmutação dos metais constituía
apenas o seu fito aparente, a face visível de uma operação
interior. Logo no primeiro capítulo deste romance,
sintomaticamente intitulado “O Longo Caminho”,
Zenão despedese de um primo, dizendo-lhe: “Há
alguém à minha espera. Vou até lá.”
Pergunta o interlocutor: “Quem é?” E Zenão
responde: “Hic Zeno. Eu mesmo.”
No entanto, desenganem-se os fãs de
Paulo Coelho, este não é um desses romances
que pisca o olho aos fascinados pelo oculto. Zenão,
sem deixar de ser o produto complexo do século em que
vive, prefere investigar “os movimentos diastólicos
e sistólicos do coração”, do que
perder o seu tempo a discutir os atributos de Deus ou a procurar
uma saída no labirinto alegórico dos filósofos
alquímicos.
O pintor e cientista visionário Leonardo
Da Vinci, o cirurgião Ambroise Paré, o anatomista
Vesálio, o médico e alquimista Paracelso e,
talvez mais do que todos, Erasmo de Roterdão, são
algumas das figuras históricas com as quais poderemos
ser tentados a identificar Zenão.
Num apêndice que redigiu para o livro,
Yourcenar admite estas e outras influências, mas alerta
que não pretendeu “compor mecanicamente uma personagem
sintética, coisa que nenhum romancista consciencioso
aceita fazer”. De facto, poucas personagens na história
da literatura conseguem ser tão “reais”
como Zenão.
Se quisermos resumir este livro, o melhor
ainda será citar a própria Yourcenar, na já
referida carta a Gallimard: “Trata-se da vida movimentada,
mas também meditativa, de um homem que faz total tábua
rasa das ideias e preconceitos do seu século para ver
depois onde o seu pensamento o conduzirá livremente.”
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