Marguerite Yourcenar
Isabel Allende


Marguerite Yourcenar
Por Vasco

 

Tiragem de 100 mil exemplares
“A obra ao negro”, de Marguerite Yourcenar
Por Luís Miguel Queiroz

O percurso de Zenão, no pano de fundo da Europa da primeira metade do século XVI. Uma obra-prima em nada inferior a “Memórias de Adriano”, o romance que celebrizou Yourcenar.

Poucos dias antes de rebentar, em Paris, o movimento de contestação estudantil de Maio de 1968, aparecia nas livrarias francesas um livro intitulado “A Obra ao Negro”. No meio de uma tal agitação, que tomava as ruas e monopolizava os “media”, parecia haver bons motivos para duvidar do êxito de um romance de fundo histórico, cuja acção, narrada numa escrita exigente e quase anacronicamente “clássica”, decorria no distante século XVI.

A própria autora, Marguerite Yourcenar, numa carta dirigida, em 1964, ao editor Gaston Gallimard, confessava-se apreensiva: “Pensei escrever as ‘Memórias de Adriano’ para dez pessoas, e enganei-me. Creio neste momento terminar ‘A Obra ao Negro’ para dez pessoas e é muito possível que não me engane.”

Na verdade, voltou a enganar- se. Em apenas dois meses, a Gallimard esgotou duas tiragens, num total de 40 mil exemplares. Os críticos, descontadas raríssimas excepções, não lhe pouparam elogios. Muitos falaram de “obra-prima”. Apenas um ou outro se lamentou de “falta de calor”. O que talvez possa ser lido como um involuntário elogio, já que é justamente pela sua deliberada e impiedosa rasura de todo o sentimentalismo que este livro consegue emocionar tão profundamente os seus leitores.

Constituindo um espantoso fresco da Europa do século XVI — das intrigas políticas às querelas religiosas, da filosofia à vida quotidiana, da cultura literária às discussões científicas —, “A Obra ao Negro” é também a história pessoal de Zenão, o filho bastardo de um grande negociante de Bruges, cujo pai, que não chega a reconhecê-lo, era ainda aparentado com a poderosa família dos Médicis.

Médico, filósofo e alquimista, podem ver-se na vida de Zenão, embora o romance não o assuma expressamente, as etapas da Grande Obra alquímica, com os seus momentos de decantação, dissipação e sublimação. O objectivo da alquimia, reclama a tradição, era o de transformar o próprio alquimista. A transmutação dos metais constituía apenas o seu fito aparente, a face visível de uma operação interior. Logo no primeiro capítulo deste romance, sintomaticamente intitulado “O Longo Caminho”, Zenão despedese de um primo, dizendo-lhe: “Há alguém à minha espera. Vou até lá.” Pergunta o interlocutor: “Quem é?” E Zenão responde: “Hic Zeno. Eu mesmo.”

No entanto, desenganem-se os fãs de Paulo Coelho, este não é um desses romances que pisca o olho aos fascinados pelo oculto. Zenão, sem deixar de ser o produto complexo do século em que vive, prefere investigar “os movimentos diastólicos e sistólicos do coração”, do que perder o seu tempo a discutir os atributos de Deus ou a procurar uma saída no labirinto alegórico dos filósofos alquímicos.

O pintor e cientista visionário Leonardo Da Vinci, o cirurgião Ambroise Paré, o anatomista Vesálio, o médico e alquimista Paracelso e, talvez mais do que todos, Erasmo de Roterdão, são algumas das figuras históricas com as quais poderemos ser tentados a identificar Zenão.

Num apêndice que redigiu para o livro, Yourcenar admite estas e outras influências, mas alerta que não pretendeu “compor mecanicamente uma personagem sintética, coisa que nenhum romancista consciencioso aceita fazer”. De facto, poucas personagens na história da literatura conseguem ser tão “reais” como Zenão.

Se quisermos resumir este livro, o melhor ainda será citar a própria Yourcenar, na já referida carta a Gallimard: “Trata-se da vida movimentada, mas também meditativa, de um homem que faz total tábua rasa das ideias e preconceitos do seu século para ver depois onde o seu pensamento o conduzirá livremente.”