Um Homem Livre em
Tempos Sombrios
Por Luís Miguel Queirós
Quarta-feira, 04 de Dezembro de 2002
Um extraordinário fresco das convulsões
políticas e religiosas da Europa quinhentista, do qual
se destaca o percurso solitário de um homem livre:
Zenão, médico, filósofo, alquimista
É possível que em 1968, quando
Marguerite Yourcenar publicou "A Obra ao Negro",
a expressão "escrever bem" já não
fizesse muito sentido. De facto, pode dizer-se que Proust,
Joyce, Kafka ou Faulkner escreviam bem, mas dificilmente se
estará a falar da mesma coisa em todos os casos. Não
obstante, é mesmo essa a expressão que quase
irresistivelmente ocorre a quem leia duas ou três páginas
deste livro, sejam elas quais forem. Mais do que abrir novos
caminhos à linguagem literária, Yourcenar levou
o romance clássico a um extremo de perfeição
dificilmente ultrapassável.
"A Obra ao Negro" narra a vida de
Zenão, filho bastardo de uma poderosa família
de negociantes, desde o seu nascimento em Bruges até
ao seu regresso, já velho, à terra natal. Numa
Flandres incendiada pelas múltiplas correntes da Reforma,
mas submetida ao império católico de Carlos
V, Zenão despreza por igual os fanatismos de um lado
e do outro, como desdenha, também, os dogmas da fé
muçulmana ou judaica. Foi discípulo de alquimistas
e cabalistas, mas interessam-no menos as "estranhas fórmulas
tiradas do 'Zohar', referentes às correspondências
existentes entre os metais, as hierarquias celestes e os astros"
do que alguns segredos práticos descobertos "à
força de lidar com as retortas".
Levou uma vida de asceta, mas não se
dispensou de experimentar o prazer carnal com homens e mulheres.
Abomina a estupidez da Inquisição, mas não
tem vocação para mártir. Num dos mais
extraordinários capítulos do livro, intitulado
"Uma Conversa em Innsbruck", Zenão interpela
o seu primo Henrique Maximiliano: "Serei eu, acaso, como
o burro do Servet [teólogo e médico espanhol
a quem se atribui a primeira referência à circulação
sanguínea, foi queimado vivo em 1553] - prosseguiu
Zenão com sanha -, que me arrisque a ser queimado a
fogo lento numa praça pública, para honrar não
sei que interpretação de um dogma, quando ando
às voltas com o meu trabalho sobre os movimentos diastólicos
e sistólicos do coração, que para mim
têm muito mais interesse?".
O seu principal cuidado é não
chamar a atenção sobre si próprio, de
modo a que não seja perturbado no seu esforço
de, cada dia que passa, "pensar com um pouco mais de
clareza que no dia anterior". É certo que vai
publicando, aqui e ali, os resultados a que o levam as suas
experimentações científicas, mas tem
o cuidado de ser obscuro. Disso se justifica a seu primo:
"Que vem a ser o erro, e o seu sucedâneo, a mentira
- prosseguiu Zenão -, senão uma espécie
de 'Caput Mortuum', uma matéria inerte sem a qual a
verdade, excessivamente volátil, não poderia
ser triturada no cadinho humano? Esses pensadores comezinhos
erguem aos píncaros da Lua aqueles que se lhes assemelham
e insurgem-se contra os que se lhes opõem; se as nossas
ideias forem, na verdade, de diferente teor das deles, não
as percebem; nem sequer as vêem, como um animal rancoroso
depressa esquece, no chão da sua jaula, um objecto
insólito que não consiga destruir ou devorar.
E assim é possível tornarmo-nos invisíveis".
Um contestatário do século XVI
Um dos aspectos mais impressionantes deste romance é
a assustadora erudição que lhe subjaz. Parece
não ter havido dimensão da vida europeia da
primeira metade do século XVI que Yourcenar não
tenha estudado a fundo. Deve ser raro, de resto, o leitor
que chegue ao fim deste livro e saiba distinguir, sem erro,
as personagens ficcionadas e as que efectivamente existiram.
Mas a ocasional ignorância desta ou daquela referência
é irrelevante para se apreciar o romance. Aliás,
durante largos capítulos, o texto não refere
qualquer data. Logo na segunda página, o referido primo
de Zenão hesita entre "alistar-se nas tropas do
imperador ou nas do rei de França". Mas não
se fala, nem se falará, de Carlos V ou de Francisco
I de Valois. Só o primeiro virá a ser nomeado,
muito mais tarde, e como "César Carlos".
Esta estratégia é mantida ao
longo de todo o romance e não visará decerto
pôr à prova os conhecimentos históricos
do leitor. Yourcenar recorre a um narrador omnisciente, mas
que não conhece aquilo que, em relação
ao tempo em que decorre a acção, seria o futuro.
Quer tenha a voz o narrador, quer alguma das personagens,
a regra do jogo é que também o leitor seja seu
contemporâneo e, portanto, saiba do que estão
a falar. E se não sabe, pouco importa, já que,
em boa medida, este é um romance intemporal. Zenão
veio ao mundo na complexa e contraditória Europa de
Quinhentos - um século em que Vesálio desvendava
os segredos da anatomia humana enquanto os anabaptistas, em
nome da pureza evangélica, se faziam chacinar em Münster
-, mas as forças externas e as pulsões interiores
com as quais se debate, num esforço incessante para
construir o seu próprio percurso ético e intelectual,
existiram, sob outros nomes e formas, em todos os tempos,
incluindo o presente.
A pretexto da coincidência temporal entre
o lançamento do romance, em Paris, e o início
do movimento estudantil de Maio de 68, Matthieu Galley, autor
de um livro de entrevistas com Marguerite Yourcenar, perguntou-lhe
se Zenão era um contestatário. "Se por
contestatário se entende anti-institucional, então
sim, sem dúvida", respondeu Yourcenar. E a outro
jornalista que lhe pediu um depoimento sobre o Maio de 68
dá uma resposta cuja lucidez isenta de cinismo tem
o estilo de Zenão: "Viam-se bem todos os erros
cometidos, mas aderia-se às esperanças dos estudantes".
Nesses dias em que a escritora permaneceu em
Paris, acompanhando o lançamento do seu livro, alguns
desses estudantes podem bem ter-se cruzado com ela nas ruas.
E talvez se surpreendessem se conhecessem pormenores da vida
quotidiana dessa senhora sexagenária de aspecto conservador.
Yourcenar não tinha carro nem televisão, era
vegetariana, cozia o seu próprio pão, vivia
conjugalmente com uma mulher, e há muito que participava,
nos Estados Unidos, em manifestações pacifistas
e ecologistas.
Yourcenar tinha 65 anos quando publicou "A
Obra ao Negro", mas a origem do livro recua aos seus
18 anos, quando começou a trabalhar num projecto de
romance que acabaria por abandonar. Mais tarde aproveitou
esse material para as três novelas que compõem
"La Mort Conduit l'Attelage", editado em 1934. Vinte
anos depois, ao procurar reescrever uma destas breves narrativas,
"D'Après Dürer", acabou, afinal, por
escrever um novo e extenso romance. Não, decerto, o
livro que fora incapaz de escrever na juventude, mas talvez
o seu herdeiro.
Em sentido bastante literal, e a acreditar
no que ela própria diz, Zenão foi uma das presenças
mais duradouras e relevantes na vida de Yourcenar. A escritora
admite que falava amiúde com ele e que, em momentos
de dúvida ou angústia, não era raro pedir-lhe
conselho. Já o romance saíra há muitos
anos, quando escreveu: "Quantas vezes, de noite, não
podendo dormir, tive a impressão de estender a mão
a Zenão. Acrescentemos sem demora para os imbecis que
lerem esta nota que, se me aconteceu frequentemente contemplar
as minhas personagens a fazer amor (e às vezes com
um certo prazer carnal da minha parte), nunca aconteceu eu
imaginar-me unindo-me a elas. Não se vai para a cama
com uma parte de nós próprios".
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