A Costa
dos Murmúrios
Lídia Jorge



 

Colecção Mil Folhas
Lídia Jorge
Por Andreia Azevedo Soares
Quarta-feira, 24 de Julho de 2002

"Somos pessoas com o seu lado racista. E fomos colonialistas. O que não queremos é entender isso. Nós fomos violentos na guerra colonial"

Tal como a vida humana, a história do mundo sempre foi precária. As narrativas individuais passam dos murmúrios ao silêncio. Ficam apenas os relatos oficiais. "A Costa dos Murmúrios" procura resgatar outros olhares sobre a ocupação portuguesa em Moçambique. Nesta conversa com o PÚBLICO, a autora fala da guerra colonial e da necessidade contar tudo outra vez. Como se narrar fosse a arma derradeira do homem contra a sua finitude.

A chuva de gafanhotos é talvez a imagem mais forte de "A Costa dos Murmúrios". O fenómeno encobre, como se pintasse de verde para desviar a atenção, o envenenamento de centenas de negros na Beira, em Moçambique. Mas a metáfora dos ortópteros também traduz a precariedade da vida e do discurso humano: os insectos são seres efémeros. Assim como a história. Daí a urgência de narrar, de desafiar o tempo. Para que a erosão da memória não silencie jamais os murmúrios.

Lídia Jorge, escritora algarvia de 56 anos, recorre com frequência à "figura mítica dos gafanhotos" quando quer discorrer sobre o conteúdo de "A Costa dos Murmúrios", publicado em 1988 em Portugal e, posteriormente, noutros seis países. Ela fá-lo porque ali está a síntese do livro, da mesma forma que a imagem de uma manta de soldado condensa a essência de "O Vale da Paixão" (1998), o seu mais recente romance.

A autora tem dez volumes publicados na sua colecção "Obras Completas", editada pelas Publicações Dom Quixote - sendo que sete deles são romances, dois dedicam-se aos contos e um ao teatro ("A Maçon", 1996). Em Outubro deste ano, mais um título sairá do seu alfobre literário. Lídia Jorge não quis falar do novo livro, mas confessou nesta entrevista o desejo de escrever uma continuação de "A Costa dos Murmúrios". A sequela trataria das mazelas africanas após o colonialismo.

PÚBLICO - "A Costa dos Murmúrios" é a sua obra mais estudada nos meios académicos. E o livro tem sido, desde a sua publicação em 1988, alvo de sucessivas edições. Como explica a aceitação desse romance por um público tão variado?
LÍDIA JORGE - Acho que encontrei em "A Costa dos Murmúrios" uma espécie de síntese. Houve ali um cruzamento proveitoso do gosto que tenho por escrever sobre o que se passa no íntimo das figuras com a história que as rodeia. Seria uma espécie de ligação entre o exterior e o interior, entre o íntimo e o público, entre o pessoal e o histórico. Esse livro, passando pela imagem mítica dos gafanhotos, permitiu sempre falar do momento da história e, ao mesmo tempo, dos sentimentos pessoais. O olhar a partir de uma varanda de um hotel possibilitou estar dentro e fora. Isso foi um ponto de vista, e também um ponto de partida, que torna este livro de fácil entendimento e leitura. Fácil, mas sem cedência nenhuma. Temos também a questão histórica que está por detrás. Mas o livro não é propriamente sobre a guerra colonial, não tem a descrição directa dos massacres. Não é como os livros escritos por autores homens que fizeram guerra - designadamente o caso do João de Melo e do [António] Lobo Antunes. Não me coloquei nessa posição, não tinha essa experiência. Acho que o facto de ter falado mais das motivações da violência do que propriamente do teatro de guerra em si leva à compreensão de um outro tipo de engrenagem. E isso permitiu uma visão ampla, em que as paixões são colocadas de uma forma distanciada e interpretativa. A perspectiva é a de quem fica e não de quem vai para o mato.

Apesar de não descrever a guerra, pesquisou documentos militares e recolheu testemunhos de quem esteve lá...

...sim, estive no Museu Militar [em Lisboa]. E fiz uma imensa pesquisa sobre os relatórios das missões que se faziam ao mato.

Esse trabalho foi importante para a contextualização histórica ou mesmo para a percepção dos cheiros e da cor local?

Quer dizer... Eu já trazia [de Moçambique] as narrativas e a percepção das coisas. Agora, quando eu passava à descrição de elementos concretos, queria ter a certeza de que não falhava. Queria estar certa de que a parte impressionista não era traída por uma memória arredada, até porque os anos que descrevo [1968-1969] não são concretamente os anos em que vivi [em Moçambique, entre 1970 e 1972]. Apercebi-me que as narrativas desse período ainda estavam muito vivas. Tinha pensado em nunca escrever sobre esse momento, de tal forma ele tinha sido duro para mim.

E como foi que o romance se impôs, como é que "A Costa dos Murmúrios" reclamou ser escrita?

O romance impôs-se passados muitos anos. À medida que os anos se passavam - e não eram tantos assim -, apercebia-me que a memória das coisas desaparecia completamente. Comecei a ser assaltada pelo sentimento de que tinha espreitado um momento particular da história da Europa em relação a África. E de que a história o traíra na sua essência. Porque se estava a dar apenas os relatos oficiais das coisas. E os sentimentos humanos? E os milhares de mortos não tinham uma cruz verdadeira sobre a sua sepultura? Então, fiquei com uma necessidade enorme de fazer reviver figuras, figuras que eu tinha conhecido no auge da juventude. A maior parte delas já não existiam - umas porque tinham morrido fisicamente, outras porque desapareciam em vidas lamentosas e anódinas -, mas eu tinha um desejo enorme de as fazer viver. Naturalmente, não sou capaz de criar figuras a partir de seres existentes. São, portanto, abstracções, criações laterais em relação às figuras verdadeiras. Mas são uma homenagem para que elas não se apagassem. Aliás, é por isso que esse livro se chama "A Costa dos Murmúrios". É a ideia de que a história se apagava.

Voltou a Moçambique depois de escrever "A Costa dos Murmúrios"? Qual foi a recepção da obra lá?

Sim. Vi leitores muito entusiasmados. As pessoas, muitas delas ligadas às universidades, entendiam muito bem o livro. E muitas acharam que tinha sido um livro... como hei-de dizer...

...um livro que finalmente conseguia colocar-se no lugar do outro?

Sim. Onde eu sinto mais resistência a esse livro é nalgumas camadas de leitores portugueses. Há pouco tempo, uma senhora muito simpática disse-me que gostava de todos os meus livros menos deste ["A Costa dos Murmúrios"]. E eu perguntei porquê. Ela disse: "Porque não é verdade. Nunca envenenámos os negros". Percebi que era uma pessoa que lá tinha vivido e que se tinha sentido chocada com aquela imagem que eu lá pus [no livro] do álcool metílico. Algumas pessoas sentiram-se ofendidas, não conseguiram transpor isso como uma metáfora. Entenderam à letra.

Muitos leitores interpretam as atrocidades do livro como uma metáfora do massacre de Wiriamu, por exemplo.

Mas isso está certo. Nós não fomos os anjos por que nos queremos passar. Na altura, eu era professora de um liceu na Beira. Certa vez, um aluno disse-me que todas as pessoas da aldeia dele tinham morrido, que ele já não tinha família. Acho que os portugueses têm um problema: não querem confrontar-se com o próprio rosto. Nós somos a nossa própria forma, somos pessoas com o seu lado racista. E fomos colonialistas. O que não queremos é entender isso. Nós fomos violentos na guerra colonial.

Acredita que a dificuldade de Portugal em mirar-se ao espelho está na difícil aceitação do colapso de um império ou na culpa histórica do colonizador?

Acho que são as duas coisas misturadas. A segunda é consequência da primeira. Durante muito tempo nós gerimos um império com uma noção muito mais metafísica do que propriamente física do império. Tínhamos a ideia de que a nossa colonização era feita na base das trocas comerciais, mas a componente religiosa e católica era muito forte. Tínhamos a ideia de que salvávamos gente. O que acontece é que começámos a achar que tínhamos uma missão evangelizadora no mundo, que tínhamos um império transcendental. E com isso acabamos por recusar a nossa verdade. Tínhamos um império mal gerido, com dificuldade de fazer crescer o outro e até de nós próprios nos gerirmos. Tínhamos um conceito de exploração imediata, rápida, sem criar estruturas. Mantivemos até ao século XX a dualidade de chegar às terras e erguer uma igreja e um forte militar; enquanto os ingleses, a partir do século XVIII, onde chegavam punham não apenas a igreja e o forte, mas também a escola, a universidade, o hospital e o tribunal. Vamos a qualquer cidade do interior dos Estados Unidos e encontramos isso lá. Nós não fizemos isso. Só tivemos universidade depois da guerra colonial rebentar e mesmo assim era uma coisa pálida. Temos de nos ver ao espelho. Enquanto não olharmos para nós, não saberemos a dimensão real que temos. Estaremos sempre a oscilar entre momentos de depressão absoluta, em que achamos que não valemos nada, e momentos de extrema euforia, que evocam noções exageradas de quinto império.

Essa oscilação esteve patente durante o Mundial de Futebol.
Exactamente. Vamos do tudo ou nada. Não vemos que prolongamos essa guerra colonial para além do que era admissível. E depois surgiram sentimentos contraditórios que ainda não estão resolvidos. Basta dizer, em relação à guerra colonial, que o Mário Soares, que é uma figura de consenso nacional, foi vaiado em frente ao monumento dos combatentes da guerra do ultramar. Isso significa que há uma zona que ainda não foi aceite, que está mal digerida. Ainda hoje há pessoas a escrever sobre a descolonização. Há ainda pessoas agarradas a traumas de uma violência que provêm daí. Parece-me que as situações históricas mudaram, mas os sentimentos são muito mais lentos do que os elementos históricos. E é por isso que a ficção tem um lastro muito maior. Muitos jornalistas franceses perguntam porque continuamos a escrever sobre isso. E a resposta é só uma...

... o chamamento continua.
Sem dúvida alguma. Há momentos em que as sociedades entram em crises tão fortes que todos os espectros do passado e do futuro estão acumulados. Aquilo que para mim foi importante neste livro foi mostrar, à minha maneira, como pessoas que na vida quotidiana eram pacíficas - um deles era até capaz de vir a ser um grande matemático [a personagem Luís Alex], e eu considero que a matemática está perto da grande harmonia das artes e da música - podem revelar-se outras perante a violência.

A personagem Luís Alex tinha um desejo mítico de ser um herói.

Ele queria ser um herói em alguma coisa. Ele tinha energia para isso. Quando era confrontado com o teorema do Galois, ele punha essa energia em função de uma descoberta matemática. Porém, deslocado do seu sítio e colocado numa situação de violência, ele queria de novo ser um herói. Então ia pegar nessa energia para se tornar um carrasco. Isso para mim é um elemento misterioso e de grande estupefacção. Se alguma coisa eu aprendi nesses anos de juventude [em Moçambique] foi que nós não nos conhecemos enquanto não formos confrontados com grandes cenários de violência e com o espectro da morte. Foi quase um trauma para mim. Eu achava que quem era pacífico na paz o era sempre. E não é verdade. Percebi então que ser corajoso e honrado são sobretudo performances, competências, coisas adquiridas por treino.

Essas máscaras sociais são determinadas por modelos. É daí que vem a importância da relação mimética que Luís Alex estabelece com o capitão Forza Leal?

Com certeza. O herói segue sempre os passos de outro herói. Quer fazer sempre alguma coisa que outro já fez. Não há herói sem modelo. Ele é empurrado sempre por uma meta que alguém estabeleceu antes, que pode ser ultrapassada. Nesse caso, o herói de Luís Alex era o Forza Leal, uma personagem com cicatrizes que deixava à mostra, como prova de um feito heróico. Em tempos de paz, essa marca física é algo absolutamente ridículo. Mas em momentos de luta, todos os nossos valores pacíficos se alteram em função de outras condutas. A ideia do mártir é algo com muito mais força do que podemos imaginar.

Eva Lopo, na segunda parte do romance, narra como se estivesse na varanda do hotel em ruína. O seu relato, vinte anos depois da guerra, contém o riso, a ironia...

... e a noção de precariedade das coisas. Aliás, os gafanhotos são isso: a imagem do ser no tempo. O que é um homem se não um gafanhoto voando no tempo? Esses vinte anos revolvidos permitem a ironia e o desprendimento. Ela troça das interpretações taxativas dos outros. Nunca tem certeza das interpretações. Aliás, eu gostei imenso de ter composto essa figura por isso mesmo, porque ela não é nada convencional. Não tem a certeza de nada. Apresenta as várias versões das coisas.

Mas Eva Lopo nunca é condescendente com as verdades absolutas.

Pois não. Ela acha que cada um tem a sua [verdade]. Quanto mais versões houver, mais perto se estará da verdade. Ela é uma sabedora desse processo. Tem ideia de que a narrativa convencional é a que mais se aproxima da totalidade.

Foi por isso que escolheu compor a personagem como uma estudante da Faculdade de História? Para justificar esse olhar de Eva Lopo?

Sim, porque ela assim podia falar sobre o assunto. Ela é sensível à ideia de que se deve criar uma contra-história. Caso contrário, não teria nenhum suporte na cabeça que lhe permitisse abrir a janela para essa problemática que a invade do princípio ao fim. Ela procura fazer uma interpretação das coisas.

A personagem Helena de Tróia remete-nos obviamente para os textos homéricos. E também para a questão da beleza feminina capaz de desencadear uma guerra. Como construiu essa figura?

Eu já nem sei muito bem como ela entrou ali. O "puzzle" exigia que ela estivesse ali. Na mitologia antiga, Marte está sempre associado à Vénus. Os homens da guerra têm de si mesmos a ideia de heróis, de seres de excepção porque são capazes de matar. Eles têm as regras de matar, sabem quando se deve matar. Isso dá-lhes uma superioridade extraordinária, pois as sociedades estão organizadas para nós não nos matarmos. Mas o militar sabe que há situações particulares em que é permitido matar.

É o reverso do privilégio feminino de dar a vida.
Exactamente. E isso é o passaporte para o ser de excepção. O que acontece é que a mulher bonita, sobretudo se é fútil, encaixa perfeitamente nesse quadro. Serve perfeitamente de vítima ou de observadora da vítima. Está muito próxima daquele que vai ser morto. E por alguma coisa elas as duas [Evita e Helena] vão assistir àquela matança das aves [numa determinada parte do romance]. No fundo, o que eles [Luís Alex e Capitão Forza Leal] estão sempre a dizer é "vocês são belíssimas, mas nós, se quisermos, podemos destruir-vos completamente. Vocês são testemunhas daquilo que nós podemos fazer." As coisas encaixam muito bem: o herói sacrificado e cheio de cicatrizes e a mulher linda, fútil e à espera.

Mas a Helena de Tróia é falsamente fútil. Ela é ardilosa...

Ela saiu-lhe fora do esquema [de Forza Leal]. Aliás, as duas mulheres [Evita e Helena] saem-lhes fora do esquema. Fazem ali um ensaio da liberdade, de fuga. Elas são contemporâneas de uma libertação de si mesmas. Entram dentro do esquema pelas formas convencionais, só que saem de uma outra forma.

O jogo parece ser sempre subvertido. É irónica, por exemplo, a forma como Luís Alex acaba por morrer não na guerra mas num jogo de roleta russa.

Sim, mas coloquei aí a convicção de que em toda a estratégia há um lado imponderável. Uma espécie de jogo irónico que acontece, mas que nunca é dominado e nunca é previsto. E é por isso que muitos combatentes, em vez de morrer no próprio teatro de guerra, morrem em bares, em casa, jogando ao acaso. Querem desafiar o imprevisível, passar para o outro lado para ver como é que é. Percebi na pesquisa que fiz que a roleta russa foi utilizada em muitos teatros de guerra - no Vietname, por exemplo. Aliás, foi a pesquisa que também me levou à questão do cego.

O cego que apresenta a palestra "Portugal daquém e dalém mar é eterno" descrita no romance?

Sim. Essa palestra existiu. Era perfeitamente atraente imaginar que alguém - cego, ainda por cima - visse esse futuro de Portugal eterno aquém e além mar. É de um ridículo extraordinário, mas que mostra a noção metafísica de um conceito de pátria ainda do século XVI.

Mas a ideia de predestinação, de que falta cumprir Portugal, ainda persiste...

Isso continua a haver em muitos sítios, sobretudo em lugares afastados de Portugal, onde se tem uma visão mítica de Portugal. Só que nós aqui dentro sabemos bem que Portugal falta cumprir - sim, pois falta, falta ser mais sério, mais honesto, mais trabalhador, mais pragmático! É natural que a distância mitifique a pátria.

E o palestrante era mesmo cego?
Sabe o que é? Tenho receio de que ele esteja vivo e se reconheça no romance. [risos] E isso seria uma coisa terrível. É preciso ter muito cuidado. Como dizia, essa palestra existe e foi-me mostrada no Museu Militar [em Lisboa]. Há pedaços [no livro] que são praticamente transcrições. Mas também assisti a outras palestras e elas eram todas perfeitamente anacrónicas. Era como se não tivesse havido a Argélia, o Vietname e todas as independências africanas. Como se não se soubesse o movimento internacional após a Segunda Guerra Mundial para que os países deixassem as suas colónias. Era como se Portugal se mantivesse no século XVI. Como é que nós pudemos sacrificar gente atrás de gente? Foi uma coisa brutal. Só um louco que não quer ver que, em termos de sentimentos, permanecemos com certos estigmas. Os mesmos estigmas funcionando noutros tempos.

Afirmou numa palestra que o livro "Porto-Sudão", do escritor francês Olivier Rolin, seria uma continuação de "A Costa dos Murmúrios"...

Sim, porque ele [Olivier Rolin] fala de uma zona de África que é pós-colonial. Fala das ruínas feitas pelos próprios [africanos], onde a situação colonial ainda está presente, mas onde a degradação e o aprofundamento da miséria feitos pelos próprios e a abertura a todos os vícios, à criação de zonas de morte, são a sequência natural do que está para trás. Quando se vai às ex-colónias portuguesas tem-se a sensação de estar dentro do Porto-Sudão - que é uma metáfora da África dos nossos dias. É um livro soberbo. Também me interessa a relação entre a decadência daquele homem que era um revolucionário associada à decadência da África. Quando se chega ao fim percebe-se que aquilo que o autor está a reclamar é a reconstrução de tudo. Curiosamente, os portugueses não reclamam o mesmo quando buscam histórias interessantes para escrever e é por isso que o livro de Pedro Rosa Mendes ["A Baía dos Tigres"] é um livro fundamental. Extraordinário pela arte que ele tem de transformar o jornalismo em literatura. E pela capacidade que teve de reconstruir o nosso mapa mítico cor-de-rosa em carne. Sinto-me muito orgulhosa por um português ter escrito aquele livro.

Tem vontade de escrever essa sequela de "A Costa dos Murmúrios"?

Tenho. Acho que é quase fatal escrevê-la. Se eu tiver saúde e a vida me permitir, é claro. Preciso de espaço grande de respiração, do ponto de vista geográfico, para entender coisas. Preciso de percurso, de caminhada. Acho que encontro nos sítios onde os portugueses estiveram elementos de diálogo para construir a narrativa que me é possível, que é a de testemunho no tempo que vivo. A gente não sabe se fica, mas, enquanto escreve, tem a ideia de que está a escrever uma palavra para eternidade. E tem de ter essa ilusão para escrever.

Nessa possível continuação de "A Costa dos Murmúrios", os murmúrios da história já seriam mais audíveis ou ter-se-iam desvanecido por completo no silêncio?

Não, acho que a posição será sempre a mesma. Escrevemos para captar o último murmúrio antes que se faça para sempre silêncio. Buscar aquilo que é possível recolher. Não deixar entrar no silêncio. Não deixar morrer, recuperar para a vida o mais possível daquilo que acontece. E assim todos os meus livros serão costas dos murmúrios.