"A Costa dos Murmúrios",
de Lídia Jorge
"A Costa dos Murmúrios",
de Lídia Jorge, com Uma Tiragem de 100 Mil Exemplares
Por Andreia
Azevedo Soares
Amanhã nas bancas
O romance de Lídia Jorge, o décimo
título da Colecção Mil Folhas, debruça-se
sobre a guerra colonial em Moçambique
Após José Saramago e Jorge Amado,
é a vez de Lídia Jorge contribuir para a formação
de uma comunidade lusófona no interior da colecção
Mil Folhas. A escritora algarvia traz consigo não "A
Última Dona" - como havia sido divulgado inicialmente
-, mas sim cerca de cem mil exemplares de "A Costa dos
Murmúrios", romance publicado em 1988. Essa mudança
oferece aos leitores mais jovens a possibilidade de pousar
os olhos sobre um dos textos ficcionais mais célebres
sobre a nossa guerra colonial. "A Costa dos Murmúrios"
questiona com ironia todas as verdades absolutas fixadas pelos
discursos oficiais. Desconstrói, anula e devolve, ao
som de um riso solto, as versões unívocas que
se teceram à volta da ocupação portuguesa
em Moçambique.
O texto do romance é composto por duas
partes. A primeira, pequenina, lembra um conto e chama-se
"Os Gafanhotos". Ali são narradas na terceira
pessoa as bodas matrimoniais de Evita e do alferes Luís
Alex. No terraço do hotel Stella Maris, na Beira, decorre
a festa de harmonia precária: o envenenamento de centenas
de negros (e de um branco) por álcool metílico
perturba a pretensa ordem inicial das coisas. Na sequência,
uma chuva de gafanhotos recobre todas aquelas mortes com uma
cor que sempre associamos à esperança: "o
verde-limo da luz era tão vivo que conseguia anular
os objectos vermelhos do terraço". E um jornalista
local ainda aparece no hotel, tornando-se incómodo
ao entrar num espaço que não lhe pertence -
o Stella Maris mais parece ser uma miniatura da metrópole
cravada na colónia.
A segunda parte do romance, consideravelmente
mais longa, resulta de um possível diálogo entre
o autor de "Os Gafanhotos" e Evita - personagem
que, agora, passados vinte anos, se intitula Eva Lopo. A voz
é dela. Com o distanciamento ofertado pela passagem
do tempo, Eva Lopo narra o passado como quem revolve um solo
muito compacto. Escava, tenta ir mais fundo, ri e tenta colmatar
as lacunas deixadas pelo primeiro texto. A narradora desafia
o mundo aparentemente estável que antes havia sido
entregue ao leitor. Só que o faz com ácida ironia:
"Esse é um relato encantador. Li-o com cuidado
e concluí que nele tudo é exacto e verdadeiro",
pois "o que pretendeu clarificar clarifica, e o que pretendeu
esconder ficou imerso". E do entrelaçamento dessas
duas fatias do livro vem a certeza de que todo conhecimento
é provisório. Nenhuma tentativa de recuperar
ou contar o passado pode ser plena ou definitiva. Cada discurso
histórico será sempre um olhar, uma interpretação.
"A Costa dos Murmúrios" propõe
ainda uma espécie de espelho distorcido de Evita e
Luís Alex. Trata-se da bela e ardilosa Helena de Tróia
e do capitão Forza Leal, reconhecido pela sua heróica
cicatriz no tronco. Esse casal funciona em paralelo com as
personagens mais jovens. Evita diverge da postura de Helena
diante dos acontecimentos bélicos. O alferes, que trocara
a investigação matemática pela carreira
militar, vê no seu superior hierárquico um modelo
a seguir. Pouco a pouco, o noivo altera o seu comportamento
e reproduz a lógica de violência da guerra colonial.
A mudança afasta-o de Evita: "o problema é
que em tempos me apaixonei por um rapaz inquieto à
procura duma harmonia matemática, e hoje estou esperando
por um homem que degola gente e espeta num pau". O desentendimento
de almas que se tornam tão diferentes, que interpretam
a ocupação portuguesa de forma tão díspar,
conduz a traições, seguidas de uma morte. E
o poder de narrar, de retomar cada história escondida
- seja ela íntima ou colectiva -, figura como a derradeira
possibilidade de reconciliação, de compreender
aquilo que fica suspenso ou calado. Para que os murmúrios
não se tornem silêncio antes de dar à
costa.
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