Dona Flor e seus
Dois Maridos
Jorge Amado



 

Quarta-feira, 19 de Junho de 2002
"Apertando um pouco cabe nós três..."

"Dona Flor e seus Dois Maridos" à venda hoje com o PÚBLICO
Por Bárbara Simões

Esta é "a espantosa batalha entre o espírito e a matéria", entre a doce paz e a noite libertina, entre a "vidinha" e a ânsia. Conhecemos Dona Flor casadoira e continuamos a acompanhá-la: casada pela primeira vez, depois viúva, depois casada em segundas núpcias e depois... Águas mansas, lembra Jorge Amado, escondem tempestades.

Foi "seu" Vivaldo, da funerária, quem primeiro reparou que havia qualquer coisa de errado naquele olhar de quebranto. Dona Flor e o doutor Teodoro completavam um ano de casados e a casa estava cheia de vizinhos e amigos que não tinham querido faltar à festa. Numa sala, as mulheres comentavam uma vez mais como era agora feliz a vida de Dona Flor. Noutra divisão, os homens elogiavam a formosura da dona da casa. Julgavam que o ar "cismarento" se devia aos pensamentos ternos que o segundo marido lhe inspirava.
Vivaldo chegou até a avançar uma explicação mais profunda: "Não é dinheiro que faz mulher bonita, é o trato, é o descanso do espírito, a felicidade." Foi já depois de ter proferido estas palavras que o da funerária observou Flor com mais atenção e reconheceu o dito olhar perdido. Ele já uma vez lho tinha visto. Onde? Lembrou-se então: no velório do finado (o finado era o primeiro marido, Vadinho, "um satanás"). A expressão com que Dona Flor agora recebia os parabéns era idêntica àquela com que dessa vez aceitara os pêsames. É o próprio Jorge Amado, o autor de "Dona Flor e seus Dois Maridos", quem o diz: "Felicidade não tem história, com uma vida feliz não se faz romance." Ora isto é um romance.
O namoro de Flor com Vadinho foi curto e ousado. A mãe, de início rendida aos encantos do pretendente da filha, depressa muda de atitude quando descobre que tudo o que ele havia dito era mentira. Nem dinheiro, nem posição. Vadinho é um trapaceiro, sedutor barato e cachaceiro. Dona Rozilda tem dificuldade em recompor-se. Flor é menos impressionável pela crueza da verdade. Insiste no namoro e acaba por fugir de casa para casar com Vadinho. É ele o primeiro marido de Dona Flor.
Boémio, mulherengo, jogador inveterado, atolado em dívidas e cachaça, Vadinho passa as noites nos casinos. Flor gostaria que ele fosse como os maridos das outras pessoas: "Ela o queria vindo do emprego para casa, os jornais sob o braço, um embrulho de biscoitos ou cocadas, de abarás e acarajés. Jantando na hora exata como os outros, saindo em certas noites com ela, a passeio, de braço dado, gozando a brisa e a lua." Só que ela é casada com "um excepcional", como um dia lhe explicou uma amiga. Excepcional no sentido de "diferente, fora do normal, alguém que não cabia nas medidas habituais nem se podia prender nos limites de um quotidiano medíocre e monótono". Para o bem e para o mal. E o bem Flor conhece-o na "vadiação", isto é, na cama. Vadinho desperta-a para a vida, na expressão do autor, e faz dela "uma fogueira de altas labaredas". Morre aos 31 anos.
Dizer que o segundo marido é a antítese do primeiro pode pecar por simplismo, mas não por falta de rigor. Doutor Teodoro, o farmacêutico, é um homem de bem e um bom marido. Atencioso e sério, catapulta Flor para uma vida de tranquilidade, afecto e algum desafogo. Flor continua a dirigir a Escola de Culinária Sabor e Arte, mas agora já não é por necessidade. Na existência da "professora de temperos" acabaram os sobressaltos de qualquer espécie. Para o bem... e para o mal. Chegado a esta fase da narrativa, Jorge Amado confessa até não ter grande vontade de se alongar a relatar esse "quotidiano de bonanças, monótona e insípida matéria antiliterária".
Se a história se quedasse por aqui, pouco mais haveria de facto a dizer. Mas não, vai muito além. Para não desvendar tudo, diga-se apenas que Vadinho regressa. Nu. E que no íntimo de Dona Flor tem início uma "terrível batalha" entre o espírito e a matéria, entre a doce paz e a noite libertina, entre a "vidinha" e a ânsia, parte fulcral desta obra, escrita entre 1965 e 1966. Dois é bom, três é comício? Talvez. Dois é bom, três é óptimo? Talvez também.
Diálogo de Dona Flor com Vadinho:
"- E a terra, vista de lá de cima, como é, Vadinho?
- É toda azul, meu bem. (...)
- E Deus, como ele é?
- Deus é gordo."