Tiragem de 100 mil exemplares
“Gente
Feliz com Lágrimas”, de João de Melo
Por Vanessa Rato
João de Melo será sempre o autor
de “Gente Feliz com Lágrimas”. Grande Prémio
APE em 1989, é uma visão de um certo realismo
mágico português, com olhos açorianos.
Em 1989, quando todos esperavam a entrega do
Grande Prémio de Novela e Romance da APE a Maria Velho
da Costa — incluindo, confessamente, a própria
—, o júri da Associação Portuguesa
de Escritores acabaria por tomar uma decisão inesperada
e pouco consensual: distinguir antes João de Melo,
ou seja, um insuspeito “Gente Feliz com Lágrimas”,
em vez de “Missa in Albis”.
O livro, entre vários de ensaio, contos
e poesia, foi o terceiro romance do escritor, depois de “A
Memória de Ver Matar” (1977) e “O Meu Mundo
Não É Deste Reino” (1983). Acabaria por
receber mais quatro prémios literários e conheceria
16 edições nacionais, para lá de traduções
em Espanha, França, Holanda e Roménia.
Há obras que chegam assim, com rugido
de trovão a meio de uma conversa em voz baixa. Assombram
vidas discretas.
Diz João de Melo (numa entrevista a
publicar amanhã): “Ouço dizer que outros
escritores se confrontaram já com o mesmo fadário:
ver uma obra sua sobrepor-se a todos os livros que tenham
escrito ou venham ainda a escrever. Passei a ser ‘o
autor de Gente Feliz com Lágrimas’, depois de
ter sido ‘o açoriano’ e ‘o escritor
da guerra colonial’. Se isso significa que afinal sou
o que sempre quis ser — isto é, um escritor português
—, tanto melhor. Nunca pretendi ser um ‘regionalista’,
mas alguém com direito à sua visão do
tempo e da história, e com olhos açorianos”.
Será isso “Gente Feliz com Lágrimas”.
A começar com uma viagem por mar que deixa a cidade
do Funchal “numa noite de tréguas a meio da baía,
com o presépio das suas casas ao cimo das falésias”.
Nuno Miguel, Luís Miguel e Maria
Amélia. Nomes — haverá outros —,
vozes numa narrativa de sujeitos múltiplos. Todos passam
por essa pequena morte iniciática de cinco dias de
navegação “quase sem alimento, com o abominável
cheiro dos barcos metido no estômago e nos pulmões,
quem sabe mesmo se dentro das veias”. Deixam para trás
“um sulco de lamentações e gritos”
— porque “os pobres eram sempre ruidosos, mesmo
na expressão dessa gente feliz com lágrimas”
—, para serem “cadáveres debruçados
do convés, sobre o mar de Lisboa”, até
uma poeira dourada de luzes lhes indiciar a aportagem, e o
renascimento. Estaremos em 1960, quando o próprio autor
— nascido em 1949 em Achadinha, na ilha de São
Miguel — deixa os Açores para prosseguir estudos
no Seminário dos Dominicanos? É possível,
há mais indícios autobiográficos (senão
mesmo pegadas). No masculino e no feminino, embarcamos numa
“caravela metafísica”, passamos pela Guerra
Colonial e o 25 de Abril de 74. Acabamos no Lumiar, a 20 de
Agosto de 1988, depois de um “regresso invisível”
aos Açores. Perseguimos a saga de uma família
dispersa por várias paragens. Recordamos, por alguma
inexplicável razão, essa etiqueta de “realismo
mágico”.
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