O Homem que Via
Passar os Comboios
Georges Simenon



 

""O Homem Que Via Passar Os Comboios", de Georges Simenon
A Sombria Psicologia do Homem Moderno
MARISA TORRES DA SILVA
Quarta-feira, 10 de Julho de 2002

Quem é Kees Popinga? Um homem meramente entediado com a rotina diária ou um indivíduo em crise de identidade? "O Homem que Via Passar os Comboios", de Georges Simenon, insere-se no âmbito da literatura policial, mas é também uma análise psicológica do homem moderno, dos seus fantasmas e do seu inconsciente.

Apesar de serem frequentemente considerados como semi-literatura, os romances policiais possuem uma mais-valia em relação a outros géneros literários: a capacidade intrínseca de agarrar o leitor às suas páginas, fazendo-o inclusive sofrer de curiosidade à medida que as situações-limite se desenrolam perante os seus olhos. Com os seus enigmas e mistérios, "O Homem que Via Passar os Comboios" (1938), do escritor belga Georges Simenon, consegue esta proeza própria da literatura policial, indo, porém, muito mais além dessa fórmula "mágica", ao revelar um enorme e perspicaz conhecimento da natureza humana.

Kees Popinga, o protagonista do romance, é um indivíduo cujo quotidiano rotineiro já nada acrescenta à sua existência: tem uma mulher, dois filhos, um bom emprego, uma casa aprazível, enfim, uma vida pautada por aquilo a que habitualmente denominamos de "normalidade". Mas Popinga sonhava em ser outra coisa que não Kees Popinga - e eis que a simulação do suicídio do seu patrão funciona como um "leit-motiv" para a concretização desse desejo inconfessável, dessa marginalidade ao nível do imaginário que há muito o fascinava.

A partir daí, nada mais será o mesmo. Kees transfigura o seu "modus vivendi", deambulando agora pelas iluminadas ruas parisienses, em busca de si mesmo, numa sombria auto-análise plena de complexidades. "Podia permitir-se a tudo! Podia ser tudo o que queria, agora que renunciara a ser a todo o custo, Kees Popinga, o procurador! E pensar que tivera tanto tempo um trabalho dos diabos para que a personagem fosse perfeita, para que, aos olhos dos mais exigentes, não houvesse um só pormenor escandaloso!"

A crise de identidade que assola o protagonista corresponde, de certa forma, à ruptura do homem moderno consigo mesmo, com o seu ambiente e com o seu universo, tentando libertar-se da teia social que o oprime. E Simenon elabora, sob a capa de um romance de carácter policial, essa reflexão sobre a psicologia do ser humano com mestria e argúcia, criando um mundo muito particular, por vezes à maneira de Dostoyevsky.

Tornando-se num assassino detentor de uma calma e um sangue-frio admiráveis, Popinga erra no meio da multidão, indo e vindo entre estranhos, instalando-se em hotéis ou em pensões mais modestas, evitando um padrão rígido de comportamento, que o pudesse denunciar facilmente às autoridades policiais. Contudo, sente uma curiosidade irreprimível em ler o que os jornais escrevem sobre ele, que se transforma em satisfação quando envia cartas à imprensa para rectificar dados acerca da sua vida ou acrescentar outros, com uma postura sempre irónica e desafiadora.

No texto que dirige ao chefe de redacção do principal jornal de Paris, Kees exprime essa viragem na sua personalidade de uma maneira bastante peremptória: "Eis o que eu descobri ao reflectir simplesmente, friamente, em coisas que nunca se encaram senão de um ponto de vista errado (...). Não pode imaginar até que ponto, depois de se tomar esta decisão, tudo se torna simples. Já não precisamos de nos preocupar com o que pensa fulano ou beltrano, com o que é permitido ou proibido, conveniente ou não, correcto ou incorrecto." Com efeito, a questão de saber se o protagonista é ou não "são" é frequentemente levantada, mas deixada em aberto, como se de um ponto de suspensão se tratasse, de modo a gravar uma dúvida na mente do leitor.

O sentido de composição de um universo profundamente humano e sensível, a eficácia narrativa e o gosto pela evocação concreta, aliados a uma linguagem económica, desprovida de efeitos espectaculares, são alguns dos traços que conferem singularidade a este romance de Georges Simenon, um exímio contador de histórias. "O Homem que Via Passar os Comboios", além da exploração minuciosa da "psique" humana, é ainda uma obra onde perpassa toda a habilidade do autor na construção de atmosferas, na criação de um certo "impressionismo" na sua escrita, através da conjugação das cores e da luminosidade.