As
primeiras páginas de "O Homem Que Via Passar os
Comboios"
1
Quando Julius de Coster Júnior se embebeda no Pequeno
São Jorge e quando o impossivel transpõe de
súbito os diques da vida quotidiana
No que toca pessoalmente
a Kees Popinga, temos de admitir que às oito horas
da noite ainda era tempo, pois que, assim como assim, o seu
destino não estava fixado. Mas tempo de quê?
E podia ele fazer outra coisa além do que ia fazer,
persuadido aliás de que os seus gestos não tinham
mais importância do que durante os milhares e milhares
de dias anteriormente decorridos?
Encolheria os ombros se lhe dissessem que a sua vida ia mudar
de repente e que aquela fotografia pousada sobre o aparador,
que o representava de pé no meio da família,
com uma mão despreocupadamente apoiada nas costas de
uma cadeira, seria reproduzida por todos os jornais da Europa.
Enfim, se procurasse dentro de si mesmo, em plena consciência,
o que podia predispô-lo a um futuro tumultuoso, não
se lembraria sem dúvida de uma certa emoção
furtiva, quase envergonhada, que o perturbava sempre que via
passar um comboio, sobretudo um comboio nocturno, com os estores
descidos sobre o mistério dos passageiros.
Quanto a ousar afirmar-lhe na cara que nesse instante o seu
patrão, Julius de Coster Júnior, estava abancado
na estalagem do Pequeno São Jorge e se embebedava conscienciosamente,
isso surtiria tão pouca piada como efeito, pois Kees
Popinga estava longe de apreciar a mistificação
e tinha a sua opinião sobre as pessoas e as coisas.
Ora, contra toda a verosimilhança, Julius de Coster
Júnior encontrava-se de facto no Pequeno São
Jorge.
E, em Amesterdão, num apartamento do Carlton, uma certa
Pamela tomava banho antes de ir ao Tuchinski, o cabaré
em voga.
Em que é que isto podia afectar Popinga? Ou ainda que
em Paris, num pequeno restaurante da rue Blanche, o Mélie,
uma certa Jeanne Rozier, que era ruiva, estivesse à
mesa em companhia de um fulano chamado Louis, a quem ela perguntava,
servindo-se de mostarda:
- Trabalhas esta noite?
E que em Juvisy, não longe da estação
de mercadorias, na estrada de Fontainebleau, um garagista
e a sua irmã Rose...
Em suma, nada disto existia ainda! Era o futuro - o futuro
imediato de Kees Popinga, que, nessa quarta-feira 28 de Dezembro,
às oito horas da noite, não suspeitava nem ao
de leve de coisa alguma e se dispunha a fumar um charuto.
O que ele não confessaria a ninguém, pois isso
poderia em rigor ser tomado como uma crítica da vida
familiar, é que, ao acabar de jantar, tinha uma séria
tendência para se amodorrar. A culpa não era
da comida, visto que, à semelhança da maioria
das famílias holandesas, se jantava frugalmente: chá,
pão com manteiga, delgadas fatias de carnes frias e
de queijo, por vezes um prato de acompanhamento.
A causa disso era antes o fogão de aquecimento, um
fogão imponente, do melhor que se fabrica no género,
em ladrilhos de cerâmica verde com pesados ornamentos
niquelados, um fogão que não era apenas um fogão,
mas que, pelo seu calor, pela sua respiração,
poder-se-ia dizê-lo, ritmava a vida da casa.
As caixas de charutos estavam em cima da lareira de mármore,
e Popinga escolheu um com lentidão, fungando, fazendo
estalar o tabaco, porque é uma necessidade quando se
quer saborear um charuto, e também porque sempre se
fez assim.
Do mesmo modo que, ainda mal levantada a mesa, Frida, a filha
de Popinga, que tinha quinze anos e cabelo castanho, espalhava
os seus cadernos mesmo por baixo do candeeiro e contemplava-os
demoradamente com os seus grandes olhos escuros que nada queriam
dizer ou que ninguém compreendia.
As coisas seguiam o seu curso. Carl, o garoto, este com treze
anos, estendia a cara à mãe, depois ao pai,
beijava a irmã e subia ao quarto para se deitar.
O fogão não parava de fazer ouvir o seu ronco
e Kees perguntava por hábito:
- O que é que vai fazer, mama? Dizia mamã por
causa dos filhos. - Preciso pôr o meu álbum em
dia.
Ela tinha quarenta anos e a mesma doçura, a mesma dignidade
que toda a casa, pessoas e coisas. Quase se poderia acrescentar,
como no caso do fogão, que era a melhor qualidade de
esposa da Holanda, e era aliás uma mania de Kees falar
sempre de primeira qualidade.
Justamente, a propósito de qualidade, só o chocolate
era de segunda categoria e não obstante continuava-se
a gastar daquela marca, porque cada pacote continha uma imagem
e estas imagens iam ocupar lugar num álbum especial
que conteria, dentro de alguns anos, a reprodução
a cores de todas as flores da terra.
A senhora Popinga instalou-se por conseguinte diante do famoso
álbum e classificou os seus cromos enquanto Kees rodava
os botões da telefonia, de tal modo que, do mundo exterior,
não se ouviu senão uma voz de soprano e por
vezes um tinido de faiança vindo da cozinha onde a
criada lavava a louça.
Tão denso era o ar que o fumo do charuto nem sequer
subia até ao tecto, ficando a estagnar em torno do
rosto de Popinga, que o rasgava por vezes com a mão,
como filandras.
Não havia porventura quinze anos que isto era assim,
e que eles estavam quase cristalizados nas mesmas atitudes?
Ora, um pouco antes das oito horas e meia, na altura em que
o soprano se calara e uma voz monótona dava cotações
de Bolsa, Kees descruzou as pernas, olhou para o charuto e
declarou numa voz hesitante:
- Pergunto a mim mesmo se tudo estará realmente em
ordem a bordo do Oceano III!
Um silêncio. O ronco do fogão. A senhora Popinga
teve tempo de colar duas imagens no álbum e Frida de
virar uma página do seu caderno.
- Talvez o melhor seja eu ir lá ver.
E doravante estava traçado o seu destino! O tempo de
fumar dois ou três milímetros de charuto, de
se espreguiçar, de ouvir instrumentos a afinar no auditório
de Hilversum, e Kees acabava de entrar na engrenagem.
A partir de agora, cada segundo pesava mais do que todos os
segundos que ele até então vivera, cada um dos
seus gestos adquiria tanta importância como os dos homens
de Estado cujas mais pequenas atitudes os jornais anotam.
A criada trouxe-lhe o seu grosso sobretudo cinzento, as luvas
forradas e o chapéu, enfiando-lhe umas galochas por
cima dos sapatos enquanto ele levantava docilmente um pé,
depois o outro.
Beijou a mulher, a filha, notou uma vez mais que não
sabia o que esta pensava e que talvez não pensasse
nada; em seguida, no corredor, hesitou em levar a bicicleta,
uma bicicleta inteiramente niquelada, com mudança de
velocidade, uma das mais belas que era possível imaginar.
Decidiu ir a pé, saiu de casa e voltou-se para ela
cheio de satisfação. Era uma autêntica
vivenda, da qual desenhara o projecto, vigiara a construção
e, se não era a maior do bairro, ele não deixava
de afirmar que era a melhor concebida e a mais harmoniosa.
O próprio bairro, um bairro novo, um pouco afastado
da estrada de Delfzijl, não era acaso o mais aprazível
e o mais saudável de Groninga?
Até aqui, a vida de Kees Popinga não fora feita
senão deste tipo de satisfações, satisfações
reais, pois o certo é que ninguém pode sustentar
que um objecto de primeira qualidade não é de
primeira qualidade, que uma casa bem construída não
e uma casa bem construída, nem que as carnes frias
da loja Oosting não são as melhores de toda
a cidade de Groninga.
Estava frio, um frio seco e vivificante.
As solas de borracha esmagavam a neve endurecida. De mãos
nos bolsos, charuto nos lábios, Kees caminhava na.
direcção do porto perguntando efectivamente
a si mesmo se tudo estaria em ordem a bordo do Oceano III.
Não era uma desculpa que
ele arranjara. É verdade que não lhe desagradava
caminhar na noite fresca em vez de dormitar na tepidez sensaborona
da casa. Mas ele não se atreveria a pensar oficialmente
que algum sítio do mundo pudesse ser mais gostoso que
o seu próprio lar. Era justamente por isto que corava
quando ouvia passar um comboio e surpreendia dentro de si
uma estranha angústia que podia dar a impressão
de nostalgia.
O Oceano III era de facto uma realidade e a visita nocturna
de Popinga um dever profissional. Ele desempenhava na firma
Julius de Coster en Zoon as funções de primeiro
escriturário e de procurador. A casa de Julius de Coster
en Zoon era a primeira, não só de Groninga,
mas de toda a Frísia neerlandesa, em fornecimentos
de navios, desde os cordames até ao mazute e ao carvão,
sem esquecer o álcool e as provisões de boca.
Ora, o Oceano III, que devia aparelhar à meia-noite
para transpor o canal antes da maré, fizera uma avultada
encomenda por volta da tardinha.
Kees avistou o barco de longe, pois era um clíper de
três mastros. As imediações do canal Guilhermina
estavam desertas, apenas atravancadas de amarras que ele galgou
destramente. Depois, como homem habituado a estas coisas,
trepou a escada do piloto e dirigiu-se sem hesitar para a
cabina do comandante. Em boa verdade, era a última
moratória do Destino. Ele ainda podia dar meia volta,
mas ignorava-o, empurrava uma porta e achava-se na presença
de um gigante congestionado que lhe lançava à
cara todas as injúrias e pragas que sabia. Passava-se
o mais inesperado acontecimento para quem conhecia a casa
Julius de Coster en Zoon: a «cisterna», que devia
vir às sete horas entregar o mazute- e Kees Popinga
encomendara-a pessoalmente -, não viera! Não
só ela não acostara ao Oceano III, como não
havia ninguém a bordo e as outras provisões
tão-pouco tinham sido entregues.
Cinco minutos mais tarde, um Popinga gaguejante tornava a
descer ao cais jurando que havia ali um mal-entendido e que
ele ia tratar de tudo.
O seu charuto apagara-se. Lamentou não ter trazido
a bicicleta e correu, sim, correu pelas ruas, como um gaiato,
de tal modo o desvairava a ideia daquele navio que, por falta
de mazute, ia perder a maré e ver talvez gorar-se a
sua viagem a Riga. Embora Popinga não navegasse, o
certo e que se submetera ao exame de capitão de longo
curso e sentia vergonha pela sua firma, por ele, pela marinha,
devido ao que sucedia.
O senhor Julius de Coster não se encontraria por acaso
no escritório, como acontecia algumas vezes? Não
estava lá, não, e Popinga, esbaforido, não
hesitou em dirigir-se a casa do seu patrão, uma casa
calma, solene, mas mais velha e menos prática que a
sua, como todas as casas situadas na cidade. Já só
na soleira, no momento em que batia à porta, ele se
lembrou de deitar fora a beata apagada e preparou uma frase...
Ouviram-se passos vindos de muito longe: abriu-se um ralo;
os olhos indiferentes de uma criada observaram-no. Não!
O senhor Julius de Coster não estava em casa. Então
Kees deu provas de audácia, pediu para ver a senhora
de Coster, que era uma autêntica grande dama, filha
de um governador de província que ninguém se
afoitaria a envolver num assunto comercial.
A porta acabou por se abrir. Popinga aguardou muito tempo
da parte de cá dos três degraus de mármore,
junto de uma palmeira em vaso, depois fizeram-lhe sinal para
subir e, num compartimento de luz alaranjada, achou-se diante
de uma mulher coberta por um penteador de seda que fumava
um cigarro na ponta de uma boquilha de jade.
- O que deseja? O meu marido saiu cedo para concluir um trabalho
urgente no escritório. Por que motivo não o
foi procurar lá?
Ele nunca mais se esqueceria desse penteador, nem do cabelo
castanho que formava um canutilho sobre a nuca, nem da suprema
indiferença desta mulher diante da qual titubeava saindo
às arrecuas.
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