O Tempo do "Grande
Irmão" Já Acabou?
Por Clara
Barata
Em "1984", George Orwell descreveu o mais totalitário
dos regimes, em que o próprio pensamento pode ser crime
O "grande irmão" ainda nos
mete medo? Afinal de contas, já se passaram quase duas
décadas sobre "1984", o ano que o escritor
britânico George Orwell transformou num horizonte de
receio perpetuado na imaginação popular. A União
Soviética pode ter caído no final da década
de 80, mas o regime totalitário retratado por Orwell
continua a dar que pensar.
O livro foi escrito em 1948 - o título
que Orwell acabou por escolher foi a data daquele ano, mas
invertendo os números. Tinha pensado em "O Último
Homem da Europa", mas descartou-o. O mundo que nos apresenta,
no entanto, faz mesmo pensar num fim, no final da civilização
prezada pelo Ocidente, em que o livre arbítrio e a
procura da compreensão empírica do mundo são
valores fundamentais.
É da manipulação das ideias,
da manipulação dos próprios pensamentos
que Orwell fala. A história passa-se em Londres, a
terceira maior cidade da Oceânia - um dos três
superestados que, no final da década de 80, dividem
entre si o mundo, depois da guerra nuclear da década
de 50 do século XX.
O protagonista é Winston Smith, um homem
de 39 anos - magro, louro, frágil, com ataques de tosse
que lhe roubam a respiração e uma úlcera
varicosa no tornozelo - que começa a duvidar da bondade
da sociedade rigorosamente vigiada em que vive.
Winston trabalha no Ministério da Verdade,
e a sua função é reescrever o passado,
para que este se ajuste ao presente: ajeita artigos saídos
no "Times" para que as previsões relativas
à produção de botas, por exemplo, coincidam
com a quantidade de calçado realmente produzida no
fim do ano. Para preservar a infalibilidade do Partido. Ou
corrige notícias que falem de pessoas caídas
em desgraça e que devem ser apagadas da história
- "impessoas", como são designadas na Novilíngua.
Com a Novilíngua - que se prevê
que substitua o velho inglês falado na Oceânia
em 2050 - o SOCING (socialismo inglês) pretende não
só criar uma linguagem mais económica como,
e sobretudo, controlar os pensamentos das pessoas.
O princípio é simples: se as
palavras consideradas perigosas deixarem de existir, as pessoas
deixarão de sentir insatisfação, porque
não terão palavras para expressá-la,
ou até para compreender que estão insatisfeitas.
Poderão, no máximo, dizer que o "grande
irmão" é "imbom", mas não
conseguirão ir mais longe, porque não têm
palavras que o permitam.
Um livro em branco
Winston rebela-se, e o primeiro sinal da sua
rebeldia é comprar um livro em branco - páginas
brancas que quer transformar num diário. Para isso,
tem que esconder-se num recanto providencial no seu apartamento,
em que fica fora do alcance do ecrã através
do qual todos os seus movimentos podem ser controlados.
De início, até confiar os seus
pensamentos ao diário, é demasiado difícil
para Winston. Mas, quando consegue entregar-se às páginas
em branco, inicia o caminho que o pode levar tanto à
salvação - pelo amor - como à queda,
quando os seus pensamentos contra o "grande irmão"
são descobertos.
É para a União Soviética
de Estaline, para as purgas e a repressão comandadas
pelo ditador, que o romance de Orwell remete. Samuel Goldstein,
o traidor, apresentado como o grande inimigo do Estado, parece
remeter de forma bastante óbvia para Leão Trotski,
personagem central para o estabelecimento do socialismo na
Rússia mas depois caído em desgraça e
banido até dos retratos oficiais.
Mas Goldstein é apenas o contraponto
necessário ao "grande irmão" (o "big
brother", como todos acabámos por conhecê-lo)
e tão imaterial como ele. O rosto de um homem de meia
idade, vigoroso e agradável, de bigode (a descrição
encaixa-se com a de Estaline), não é mais do
que uma imagem que serve de máscara à elite
do Partido Interno. Estes políticos não têm
outro objectivo na vida para além de se perpetuarem
no poder.
A Oceânia está sempre em guerra
- com a Eurásia ou a Lestásia, não importa.
Aliás, quando faz paz com um destes superestados, entra
imediatamente em guerra com o outro, e são apagados
todos os registos que revelem que alguma vez a guerra foi
contra outro inimigo. A história foi efectivamente
travada - vive-se sempre num eterno presente, eliminando todas
as possibilidades de reflectir sobre o mundo.
O fim da história neste eterno presente,
no qual o sentido crítico é impossível,
faz com que a memória deixe de existir e, assim, as
pessoas deixem de ter história pessoal. Quem quiser
distinguir-se, tornar-se um indivíduo, é castigado
com sofrimentos inimagináveis e com a morte. Todos
são apenas mais um na multidão. Escapar ao Grande
Irmão torna-se impossível.
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