Quarta, 14 de Agosto
de 2002
Jivago - Um
Poeta no Meio de Uma Revolução
Fernando
Sousa
O livro de Boris Pasternak, "Doutor
Jivago", está hoje à venda em mais uma
tiragem de 100 mil exemplares. É a história,
fortemente autobiográfica, de um amor trágico
sem lugar nem espaço num mundo em fase de mudanças
radicais
Inicialmente os caminhos de Boris Pasternak
e da Revolução russa não colidiram. Ele
tinha a sua vida e os revolucionários a deles. "Doutor
Jivago" ainda vinha longe. Era uma coexistência
quase perfeita.
Foi o tempo de "Minha Irmã,
a Vida", um livro de poemas aparecido em 1922, onde o
autor descreve os acontecimentos de 1917 com uma linguagem
metafórica que não só não fez
zangar ninguém como o tornou conhecido.
Seguiram-se os livros de poemas "Doença
Grave", uma visão da guerra civil, e "O Ano
de 1905", este mais voltado para a história, no
caso a insurreição precursora da revolta leninista,
e o romanesco "Spektorski", retalhos da vida de
um jovem intelectual de antes da Revolução,
obra esta já marcadamente crítica - o escritor
tornara-se um independente.
Mas depois veio o estalinismo e o terror
dos anos 1936-38, o período de todas as arbitrariedades,
de todas as perseguições. Ninguém estava
acima de suspeitas. Principalmente quem, como Pasternak, tinha
caído no goto ao leninismo, pecado capital por essa
altura.
De acordo com os especialistas do escritor
russo - e mais tarde soviético -, o facto de Bukharine,
um dos cônsules herdeiros do chefe da revolução
bolchevique, o ter considerado (I Congresso dos Escritores)
um dos maiores expoentes das letras soviéticas terá
complicado ainda mais a vida do escritor. Praticamente silenciado,
sobrevive então de traduções - Keats,
Verlaine, Shakespeare, Goethe, Shelley.
"Os Comboios do Amanhecer"
e "O Espaço Terrestre", um apelo à
glória e ao calor da humanidade, atraem de novo as
iras dos censores e da poderosa União dos Escritores.
Boris Leonidovitch Pasternak é apontado como um perigoso
"formalista". Aparecerá mais tarde descrito
na "Grande Enciclopédia Soviética"
ainda como "idealista e individualista".
É neste ambiente de cerco que
o escritor parte para a sua "datcha" de Peredelkino,
a poucos quilómetros de Moscovo, de onde escreve uma
carta a Nadezda Mandelstam, viúva do poeta Osip Mandelstam,
seu amigo, morto num campo de concentração soviético
em 1938, onde dá conta do seu trabalho: "(...)
Agora tenho a possibilidade de trabalhar durante cerca de
três meses numa coisa totalmente minha, sem ter que
pensar no ganha-pão. Quero escrever uma prosa, possivelmente
em 10-12 capítulos, não mais, sobre a nossa
vida, de Block até à última guerra. Podes
imaginar a pressa com que escrevo e o meu grande receio de
que algo possa acontecer antes de o meu trabalho estar terminado".
A prosa referida na carta, de 26 de Janeiro de 1946, é
"Doutor Jivago".
Editado em Itália
Terminado em 1956 e recusado pela revista
"Novy Mir", o que levou à sua publicação
por um editor de Milão, Feltrinelli, um comunista que
Moscovo tentou em vão convencer a devolver os originais,
"Doutor Jivago" é a história, fortemente
autobiográfica, de um amor trágico sem lugar
nem espaço num mundo em fase de mudanças radicais.
Iuri Jivago, um jovem e conhecido médico,
e poeta, apesar de estar implicado indirectamente na revolução,
nega comprometer-se com ela, retirando-se com a família
para a casa da sua mulher na Sibéria. Capturado por
guerrilheiros vermelhos e obrigado a prestar-lhes assistência
médica durante três anos, volta a Varikino, mas
a sua família já partiu para Moscovo, emigrando
posteriormente para o estrangeiro. Substituindo Tonia, a sua
até então companheira, aparece Lara, mulher
do comissário vermelho Strelnikov, unindo-se a ela
num amor trágico. A queda política de Strelnikov,
que mais tarde será condenado à morte e se suicidará,
põe em perigo a vida de Lara e de sua filha, que fogem
para a Mongólia.
Jivago, que tinha prometido acompanhá-las,
fica em Varikino, afundando-se na apatia, apesar da ajuda
dos seus amigos Gordon e Dudorov. Vive com a filha do seu
porteiro, Marona, de quem tem duas filhas. Lara também
tem uma filha de Jivago.
No fim, depois de ter desaparecido, o
médico-poeta é encontrado morto, no dia em que
ia ocupar um lugar numa clínica. Lara também
morre, mas num campo de concentração.
Acusado pela poderosa União dos
Escritores de ter "interpretado levianamente a revolução
de Outubro de 1917, as pessoas que a realizaram e a construção
social da URSS", Pasternak, entretanto galardoado com
o Nobel da Literatura, morreu em Maio de 1960, em Peredelkino,
doente e impossibilitado de discutir as ideias-mestras da
sua obra, principalmente a mais polémica, "Doutor
Jivago", ou de se defender das acusações
da "numenklatura" estalinista.
Essa, por exemplo, de ter interpretado
"levianamente" a revolução de 1917,
promovendo um homem, ao fim e ao cabo ele próprio,
que parece planar, como um mártir, sobre as fragilidades
dos outros, e despromovendo os que se revoltaram contra as
desigualdades, derrubaram o czar, o epicentro dos males russos,
e inauguraram uma pátria sem amos.
Porém nem Jivago nem o seu mentor
são contra-revolucionários, são tão-só
a-revolucionários, e, enquanto poetas, entusiastas
da humanidade e da natureza num tempo e numa terra então
menos virados para as pessoas do que para a revolução.
O estilo da obra, uma combinação do lírico
poético com o épico descritivo, é aliás
a marca de água desse desafio que continua a suscitar
admiração.
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