Este
Livro Deu Um Filme
Um épico sobre Rússia
dos bolcheviques
Quarta,
14 de Agosto de 2002, Por FILIPA AMBRÓSIO DE SOUSA
David Lean dirige Omar Shariff num filme
espectacular com a Revolução de Outubro como
cenário
Estávamos em 1965. O ano em que
foi dado a conhecer ao mundo a família von Trapp e
a sua inesquecível Maria, em "Música no
Coração", de Robert Wise. Paralelamente,
David Lean apresentou o seu mais recente filme, "Doutor
Jivago". No entanto, a obra de Pasternak não teve
no cinema o seu equivalente, apesar de Lean já ser
conotado como um competente realizador de grandes produções,
através de uma meticulosa direcção artística
e uma especial atenção aos detalhes. Disso são
reflexo "A Ponte do Rio Kwai", de 1957, e a sua
obra-prima "Lawrence da Arábia", lançado
três anos antes de "Doutor Jivago". O filme,
mais espectacular do que épico, não consegue
resumir toda a riqueza histórica e psicológica
do romance.
A obra de David Lean atravessa toda a
fase das transformações sociais da Rússia
- o período do eclodir da Primeira Guerra Mundial e
posteriormente da Revolução Bolchevique, cruzado
com um amor proibido. Um ou vários amores em tempos
de guerra? Há romantismo quanto baste: o amor de Jivago
por Lara, os desencontros dos dois amantes e o seu martírio.
A vida de Jivago é contada em
flashback pelo seu meio-irmão, interpretado por Alec
Guiness, a uma rapariga que se pensa poder ser a filha perdida
de Lara e Jivago. Órfão desde muito cedo, Yuri
é criado por uma família inglesa, em Moscovo,
apaixonando-se pela filha do casal, Tonia (Geraldine Chaplin).
Antes do rebentar da Primeira Guerra, Yuri casa com Tonia.
Paralelamente, acompanhamos a vida de Lara (Julie Christie),
uma jovem adolescente que vive igualmente em Moscovo, seduzida
pelo amante da mãe, o odiável Komarovsky (Rod
Steiger), mas acabando por casar com Pasha (Tom Courtney,
nomeado para o Óscar de melhor actor secundário).
Amigo de infância de Lara, a personagem de Pasha, acaba
por ser a mais complexa de todo o enredo. De ingénuo
e politicamente idealista, o cenário de guerra acaba
por transformá-lo num implacável líder
Bolchevique, Sterlnikov, abandonando Lara e a filha de ambos,
Katya. Como enfermeira voluntária, Lara acaba por conhecer
e apaixonar-se por Jivago, que trabalha como médico
nos campos de batalha. Mais tarde, Jivago refugia-se com a
família na Sibéria, onde reencontra Lara e iniciam
um intenso caso amoroso. Yuri, entretanto recrutado como médico
pelo Exército Vermelho, acaba por se ver separado quer
de Tonia, quer de Lara, durante três penosos anos. Perdendo
o rasto da família, o médico reencontra o seu
grande amor, Lara, na mesma cidade onde iniciara o seu caso
amoroso. No entanto, os amantes separam-se, de novo por questões
políticas, para nunca mais se encontrar. Um final trágico
como assim o retratou Pasternak.
Yuri vê Lara como uma deusa, uma
obsessão. Talvez devido ao facto de ter ficado órfão
tão cedo, não lhe foi permitido criar raízes,
e esse é o eterno desejo da personagem central. A sua
personalidade e opções mudam constantemente
ao longo do filme, vagueando entre Moscovo e a Sibéria,
de casa em casa, de guerra em guerra, sempre atento, mas sem
nunca tomar uma atitude. Lara, por sua vez, é uma mulher
terna, amada e desejada por vários homens, e que encara
o facto de uma forma passiva, deixa-se ser amada, mas, no
entanto, é vista como uma eterna vítima dos
homens. Tonia, mulher inocente e dedicada, é de uma
bondade tal que leva a personagem a uma falta de realismo
marcante.
Tendo o livro de Pasternak sido banido
na União Soviética, Lean foi obrigado a deslocar-se
a Espanha e à Finlândia para a realização
das filmagens. Desta forma, conseguiu converter o Verão
espanhol num cenário de Inverno moscovita, através
da contratação de 800 trabalhadores instalados
em Espanha, durante oito meses. O filme tem do seu lado a
magnífica fotografia de Frederick Young, premiada com
o Óscar, como o foi a música de Maurice Jarre,
com o inesquecível "Tema de Lara" e o argumento
de Robert Bolt.
Assim, "Doutor Jivago" é
muito mais a história de um amor impossível
do que uma obra política. Talvez essa tenha sido a
intenção de Boris Pasternak ao escrever o romance,
mas Robert Bolt, o argumentista de Lean, tornou-o numa história
de encontros e desencontros, tal como Victor Fleming o fizera
em "E Tudo O Vento Levou", de 1939, por detrás
do cenário da guerra civil americana.
"Doutor Jivago" não
será uma das melhores obras de Lean, mas será,
como escreveu um crítico, um dos melhores exemplos
da sua arte, tendo todos os ingredientes para se transformar
naquilo que se transformou: um êxito de bilheteira,
aclamado pelo público.
|