"O
Costa do Castelo"
de Arthur Duarte
Por Elisabete Vilar
Eram os dias da rádio, essa "torneira que deita
música", e um simples aparelho servia para transfigurar
o lar mais modesto num alegre salão de baile. A chegada de
uma "telefonia" a uma pequena hospedaria na zona lisboeta
do Castelo será mesmo motivo de festa e prova de amor - no
filme "O Costa do Castelo", de Arthur Duarte.
Mas em todo o filme, a música tem uma acção
redentora: anima a pobreza honrada da donzela que, costurando, enaltece
a sua "casinha, tão modesta quanto" ela; contraria,
nas teclas do piano, o veneno e o azedume que empesta com o seu
bolor a casa e o coração da fidalguia; e há
uma "Cantiga da Rua" que chega até a ser meio de
vingança ou, no mínimo, instrumento de justiça
- na medição de forças entre ricos e pobres;
entre o amor puro e o interesseiro.
Um dos ex-libris da comédia populista, que marcou o cinema
português do meio do século passado, "O Costa
do Castelo", de 1943, trata um tema muito caro ao regime de
então: é um hino às virtudes do recato pobre,
da moral honrada dos humildes; de uma vida precária mas em
que existe amor, alegria e entreajuda.
Os ricos, em contrapartida - e em particular os fidalgos -, são
retratados como mandriões "bons vivants", como
o tio Simão, ou snobes, rígidos e empedernidos, como
a tia Mafalda (Maria Matos). De uma forma ou de outra, afastaram-se
do sentido da vida e só a descoberta do amor e prazer de
viver dos pobres do Castelo vai conseguir amolecer os seus sentimentos.
E esta revelação só é possível
graças a um quase acidente de percurso. Enquanto nos títulos
da época era frequente a situação do pobre
que se faz passar por rico ("O Pai Tirano", "O Leão
da Estrela", "Canção de Lisboa"), neste
filme é o rico que se transveste de pobre para se aproximar
de uma bela rapariga. O fidalgo Daniel (Fernando Curado Ribeiro)
aluga um quarto na casa que acolhe Luisinha (Milu), uma órfã,
empregada num banco da Baixa.
À primeira vista, não é mais do que um capricho,
a que Daniel pode dar-se o luxo porque sim. Mas o rapaz deixa-se
seduzir pela paz de presépio que reina na casa e a sua estima
estende-se também ao emblemático professor de guitarra
que aluga outro quarto, Simplício Costa, o Costa do Castelo
(António Silva).
Homem de passado misterioso, sabe-se apenas que o Costa correu
mundo e viveu aventuras, por amor de uma mulher que não pôde
desposar. É um género de "zé povinho"
de coração grande e manso, satisfeito com o que vida
lhe dá - um "cromo" do que um bom português
devia ser.
Encontrado pela família que o procurava, Daniel é
forçado a deixar a hospedaria, mas fá-lo com relutância.
Ao primo que o tenta fazer regressar a casa diz: "Nesta pobreza
que estás vendo é que se encontra aquela felicidade
que nós, os ricos, desconhecemos."
A perturbação do jovem é tal, ao abandonar
o Castelo, que sofre um aparatoso acidente: a mola que vai permitir
o ingresso dos pobres no mundo dos ricos. É a sua presença
que vai mitigar a austeridade da fidalguia. E as histórias
dos estranhos amores que se enredam no argumento entre uns e outros
dá corpo a uma das frases de marca de Simplício Costa:
"Como é diferente o amor em Portugal!"
Polícia sinaleiro sem nada para fazer
Todavia, e apesar de a mensagem central do filme pretender que
mais vale ser pobre e ter amigos e felicidade do que rico e viver
na agonia dos dias escuros, não deixam de surgir piadas mais
ou menos explícitas às condições de
vida de então (mesmo se o filme tem início com o hastear
da bandeira nacional ao som d'"A Portuguesa"). Diz-se
que a água está mais cara do que o leite; que "a
fome é protectora da elegância" e que "toda
a gente sabe que o café é feito de grão de
bico". E repete-se o ditado: "A quem não pode mais
nada, o servir também consola."
"O Costa do Castelo" mostra-nos também uma Lisboa
extinta: uma capital provinciana, atravessada por varinas e com
poucos automóveis. Há um polícia sinaleiro
na Baixa sem nada que fazer. Os traseuntes têm tempo para
dispensar a um fadista que canta na rua. O recato respira-se nas
ruas limpas e na ordem de todas as coisas.
Com soberbas interpretações - muito dramáticas
e exageradas, como mandava a época, de Maria Matos e António
Silva - "O Costa do Castelo" assinala a estreia cinematográfica
do par romântico Milu e Curado Ribeiro e regista ainda uma
das raras participações da fadista Hermínia
Silva, no papel lateral de uma cantadeira do povo lançando-se
no mundo profissional do fado. O filme, povoado de trocadilhos e
equívocos, celebrizou ainda duas cantigas que ainda hoje
se ouvem e não apenas em festas populares: "A Minha
Casinha" e "Cantiga da Rua".
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