A
comédia do nosso contentamento
Por Vasco T. Menezes
Marco do cinema português, “A Canção
de Lisboa” inaugurou, de forma deliciosa, a “comédia
portuguesa” e fica como um dos melhores exemplos do tipo de
humor que fez as delícias de várias gerações.
“Chapéus há muitos, seu palerma!”
O que é nacional é bom? Já se sabe, nem sempre
isso será verdade, mas é uma expressão que
assenta como uma luva a “A Canção de Lisboa”
(1933), de José Cottinelli Telmo. É a história
de Vasco Leitão (Vasco Santana), um estudante de Medicina
que de aluno aplicado tem pouco. Em contrapartida, os seus conhecimentos
sobre os prazeres lisboetas são de mestre, versado que é
o boémio folião nas artes dos arraiais, retiros de
fado e mulheres bonitas.
E para obter um conhecimento aprofundado em matérias tão
complexas, muito terão contribuído as mesadas enviadas
pelas tias de Trás-os-Montes, Efigénia e Perpétua
Rocha, que se mantêm na completa ignorância destas tropelias,
situação alimentada por Vasco, que lhes escreve constantemente
dizendo que tudo vai bem, que já é “doutor”,
ainda por cima com consultório aberto.
Mas a existência despreocupada do volumoso “bon vivant”
vai ser abalada quando, no mesmo dia, surgem o inevitável
chumbo no exame final e a desanimadora carta a avisar da chegada
iminente das tias, desejosas de conhecer Lisboa e de admirar a glória
do sobrinho.
O primeiro filme sonoro inteiramente produzido em Portugal (ou
“o primeiro filme português feito por portugueses”,
segundo a orgulhosa promoção da época), “A
Canção de Lisboa” fica como marco do cinema
português, já que é também o berço
da comédia de costumes nacional, que inaugurou e em relação
à qual serve de matriz original, estabelecendo-lhe as bases
futuras. Por isso, além de ser um clássico, é
também uma obra pioneira, que contribuiu muito para o desenvolvimento
de uma indústria que ainda estava nos primórdios.
Assim, não admira que à data de estreia o filme tenha
sido considerado um objecto de grande prestígio, o que levou
mesmo a que o preço dos bilhetes tivesse sido mais caro do
que o habitual (o que não foi obstáculo para um fenomenal
sucesso de bilheteira).
O arquitecto-realizador e Manoel de Oliveira
Esta é apenas uma das várias curiosidades a que
“A Canção de Lisboa” está associada,
a menor das quais não será o facto de o realizador
— Cottinelli Telmo, que escreveu também o argumento
— não ser um cineasta mas sim um arquitecto (que em
1940, por exemplo, foi responsável pela Exposição
do Mundo Português e desenhou o plano da Praça do Império,
a fonte, etc.). E segundo vários testemunhos, um realizador
com mais experiência, Chianca Garcia, foi conselheiro técnico
para a realização, mas o seu nome não figura
no genérico.
Há ainda a destacar a presença de Manoel de Oliveira
como actor, no papel de Carlos, o amigo que salva Vasco da quase
mendicidade e o lança no estrelato do mundo fadista. Como
o próprio autor de “Francisca” já recordou,
na origem da sua participação esteve uma tentativa
de chamar o público do Norte a uma obra de forte cariz alfacinha,
já que na altura Oliveira era um desportista famoso naquela
região (“porque as minhas qualidades de actor eram
pior que péssimas”, confessou, e talvez por isso nunca
mais tenha repetido a experiência). Além disso, já
tinha iniciado a carreira de realizador (com “Douro, Faina
Fluvial”, 1931) e interessava-lhe “aprender alguma coisa”.
Além da presença, à primeira vista surpreendente
(e ainda por cima como galã!), de um dos expoentes máximos
do cinema português moderno e de outros horizontes num dos
melhores representantes de uma corrente menos ambiciosa —
e essa diferença quase radical entre dois modos de ver e
pensar o cinema explica que já à época Oliveira
tenha concluído que num próximo filme não faria
nada que se parecesse com “A Canção de Lisboa”
—, outros nomes ilustres estiveram envolvidos no projecto:
o pintor Carlos Botelho foi assistente de realização,
o escritor José Gomes Ferreira colaborou na montagem e Almada
Negreiros concebeu três dos cartazes do filme.
Só o espectador sabe tudo
Estamos perante uma comédia despretensiosa e alegre, que
não pretende ser “arte” mas apenas divertir,
cumprindo na perfeição os seus propósitos.
Instituindo uma regra que viria a repetir-se num sem-número
de comédias portuguesas, “A Canção de
Lisboa” aposta em situações de equívoco,
com o humor a provir do facto de todos (menos as tias) se enganarem
uns aos outros, fazendo do espectador comparsa dessas maquinações,
o único a saber tudo o que se passa. Com efeito, o filme
acaba por consistir numa sucessão de peripécias deliciosas
demonstrativas dos esforços titânicos de Vasco para
perpetuar a mentira que construiu para as tias, no que é
acompanhado, num primeiro momento, pelo alfaiate Caetano —
o inimitável António Silva — e pelo sapateiro,
senhorio de Vasco, até descobrirem um modo mais proveitoso
de aldrabar as duas velhotas (passa por aqui a ideia da exploração
do provincianismo ingénuo por parte da esperteza “malandra”
citadina).
Apesar de algumas imperfeições — em especial,
o tratamento demasiado teatral dado a algumas cenas —, “A
Canção de Lisboa” capta de forma magnífica
a alma popular de uma Lisboa de outros tempos, focando com rigor
assinalável tipos pitorescos, motivos e costumes caracteristicamente
alfacinhas. E além do mais é sempre um prazer recordar
os “monstros sagrados” do nosso cinema popular, em toda
a sua glória: a irreverência de Vasco Santana, a presença
de António Silva e a graciosidade de Beatriz Costa, com o
seu corte de cabelo à Lulu, inesquecível na figura
da costureira Alice, a namorada de Vasco.
E se o constante jogo de duplos sentidos e chalaças roça
por vezes o óbvio, o tom nunca é alarve nem descamba
na boçalidade (ao contrário de tantos objectos “cómicos”
dos nossos dias), havendo mesmo diversas cenas de antologia, movidas
por um delicioso humor absurdo (há até um divertido
diálogo que parece ter inspirado um momento análogo
no recente “Space Cowboys”. Será Clint Eastwood
um fã?...). A título de exemplo, bastará evocar
toda a sequência da visita ao zoo (onde se ouve o imortal
“chapéus há muitos, seu palerma!”) ou
o memorável número de “A Agulha e o Dedal”.
Como se isto não bastasse, forçando um pouco a imaginação,
poderemos encontrar, numa época de cinema “conformado”,
uma crítica subtil ao regime salazarista, quando um cartão
onde se lê “Estado Novo” passa de um fato para
o rabo de uma respeitável senhora...
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