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SerieY 2
Gato Preto, Gato Branco
 

“Gato Preto, Gato Branco”,
de Emir Kusturica

Por Vasco T. Menezes

 

Em “Gato Preto, Gato Branco”, Emir Kusturica volta a exibir o seu fascínio pela comunidade cigana. Burlesco e surrealismo dão as mãos, num frenesim delirante a transbordar de vida

 

Mafiosos e “gangsters”, cantoras obesas que arrancam pregos com o ânus, porcos que comem automóveis, comboios roubados estranhamente desaparecidos, casamentos intermináveis e uma fanfarra suspensa numa árvore. São alguns dos ingredientes de “Gato Preto, Gato Branco” (1998), caldeirão efervescente preparado por Emir Kusturica, que a uns pozinhos de burlesco junta uma pitada do mais puro delírio surrealista, tudo misturado (e embalado) a um ritmo frenético.

 

Foi com esta farsa vibrante que o cineasta jugoslavo resolveu dar continuidade à sua obra, até então feita de alegorias políticas tragicómicas, visões satíricas e excêntricas do pósguerra balcânico. Críticas mordazes ao comunismo como “Lembras-te de Dolly Bell?” (1981) e “O Pai Foi em Viagem de Negócios” (1985) passaram em revista o último meio século de história da Jugoslávia, num processo culminado no monumental “Underground” (1995), comédia negra que retrata o lento e agonizante definhar de um país até ao desmoronamento final.

 

A importância desse épico para a feitura de “Gato Preto...” não pode, aliás, ser menosprezada. Desde logo, pela controvérsia com que o olhar de Kusturica sobre o colapso da pátria foi recebido nalguns quadrantes, (erradamente) descrito como pró-sérvio, leitura vigorosamente rebatida pelo arreigado activista político (“pró-jugoslavo”, respondeu). A polémica foi tal que o realizador – provavelmente ainda mal refeito da traumática experiência americana de “Arizona Dream” (1993), estreado nos EUA com mais de 20 minutos de cortes – resolveu anunciar o final da carreira. A promessa ficou por cumprir, mas ao vermos “Gato Preto...” torna-se impossível não pensar que, para Kusturica, “Underground” significou o fecho de um ciclo e a obra que se lhe seguiu o começo de algo novo. Assim, dos dois pólos entre os quais costuma balançar o “realismo mágico” de Kusturica apenas se vislumbra aqui o inebriante humor absurdo, já que a melancolia trágica que habitualmente lhe serve de contraponto está ausente. Quer isto dizer que em “Gato Preto...” não se assistirá propriamente a um corte com o passado, antes ao reordenar das coordenadas de um universo ao mesmo tempo caótico e belo, puxando para primeiro plano a loucura do “nonsense”, que antes estava “apenas” em plano de igualdade. Resumindo, é como se a desbunda festiva da procissão musical que marca o início de “Underground” tivesse agora duas horas...

 

O resultado é um furacão de energia febril cuja lógica parece ser unicamente a de um desejo de (re)descobrir uma pureza e inocência cinematográficas primordiais. Para isso, Kusturica, fazendo uso do estilo maníaco de “mise-enscène” que lhe é próprio (e da prodigiosa capacidade de saturar de informação, com assombroso detalhe, cada plano, onde uma quantidade inacreditável de coisas parece estar a acontecer ao mesmo tempo), ressuscita a memória do “slapstick”, cruzando-o com a BD e os “cartoons”: os actores mais parecem desenhos animados, corpos em constante sofreguidão que o realizador, mandando às malvas a coerência narrativa, coloca no centro de uma tresloucada sucessão de peripécias e “gags” hilariantes, coreografados com inexcedível destreza. E o fervor libertário desta intriga rocambolesca não poderia ter melhores protagonistas: três famílias de uma colónia de ciganos ao longo das margens do Danúbio. Povo nómada e errante, movido por uma paixão e voracidade efusivas, o fascínio por ele exercido sobre Kusturica já vinha de longe e dera inclusive origem a uma das suas obras mais celebradas, “Tempo dos Ciganos” (1989). É, sem dúvida, um “caso amoroso”, o que justifica que, por mais reprováveis que possam parecer os fura-vidas e aldrabões que povoam o filme, o olhar do realizador seja sempre caloroso e ternurento. Estamos perante figuras carnavalescas e excessivas (aliás, excesso é a palavra-chave neste filme), entre o escabroso e o grotesco. Na melhor tradição felliniana, dir-se-ia. Ou então, e se calhar mais apropriado, como se “Gato Preto...” fosse um jubiloso conto de fadas, um “Era uma vez uma comunidade cigana...” repleto de ogres, anões, gigantes e Cinderelas, a que não falta sequer o “final feliz”... Sob este prisma, fará todo o sentido a referência (paródia ou homenagem?) a “Streets of Fire” (1984), o musical e “western” urbano de Walter Hill. É que, apesar de tudo o que os separa, os dois filmes têm também muito em comum: são fantasias alimentadas pela vertigem da música (o “rock” num caso, a música cigana no outro) e movidas por um desejo de abstracção, de depuração de tudo o que é supérfluo. A cadência furiosa com que as imagens se sucedem é a mesma e ambos decorrem em território mítico: na fábula retrofuturista de Hill, “numa outra época, num outro lugar”; na esfuziante celebração da vida de Kusturica, numa terra de ninguém onde tudo é permitido (cadáveres preservados em gelo ressuscitam) e tudo está à venda (35 mil marcos é o preço de uma neta em casamento). Citando a icónica canção do primeiro que se ouve no segundo, são dois filmes que maravilhosamente se dirigem “Nowhere fast”. Talvez por isso, embora não fique como o Kusturica mais complexo ou recompensador (esse será talvez o errático mas fascinante “Arizona Dream”), “Gato Preto...” é o que se vê com maior prazer, contagiado o espectador com a sua euforia exuberante. Não se admirem se no final vos apetecer cantar e pular...