Histórias
da cidade nua
Por Marco Vaza
Nova
Iorque, 1977. Um “serial killer” aterroriza as ruas,
o “disco” e o “punk” fazem-se ouvir e o
calor é insuportável. Ingredientes para alimentar
a loucura de uma metrópole à beira do colapso.
"Há oito milhões de histórias
na cidade nua." Uma história por cada uma das pessoas
que vive em Nova Iorque. E são várias dessas histórias
que são contadas em "Verão Escaldante/Summer
of Sam" (1999), de Spike Lee, o DVD que sai hoje na Série
Y.
Lee, nascido em Atlanta mas nova-iorquino de coração,
descreve a sua cidade tal como a sentiu no Verão de 1977,
com temperaturas acima dos 40 graus, o auge do "disco sound",
a afirmação do "punk" e a histeria colectiva
provocada pelo reino de terror do "Filho de Sam", um assassino
que matava raparigas com tiros de pistola à queima-roupa.
Em 1977, Spike Lee tinha 20 anos, decidiu que queria
ser realizador e fez o seu primeiro filme, "Last Hustle in
Brooklyn", filmado em Super 8 e que retrata a vida quotidiana
dos negros e porto-riquenhos de Brooklyn. Vinte anos depois, Lee
regressou ao passado da cidade e recuperou para o cinema o seu Verão
mais quente, os ares condicionados ligados no máximo, um
"blackout" de 18 horas que provocou os maiores motins
da história de Nova Iorque e a prisão de mais de três
mil pessoas, a morte de Elvis Presley, o título dos Yankees
no basebol, o clube "punk" CBGB, a discoteca Studio 54
e os crimes do assassino do calibre 44.
Spike Lee tomou como base do filme o caso real de
David Berkowitz, condenado a passar o resto da sua vida na prisão
pelo assassinato de seis pessoas. Os crimes motivaram um clima de
grande paranóia - todos são suspeitos - e a maior
operação policial de caça ao homem da história
da cidade.
De quem é a culpa?
O cenário é o Bronx. Os protagonistas
são os membros de uma comunidade italiana, e não a
comunidade negra que geralmente preenche todos os filmes de Lee.
Estão lá Vinny (John Leguizamo), cabeleireiro de dia
e rei das discotecas à noite, Dionne (Mira Sorvino), a esposa
empregada de mesa a quem Vinny é constantemente infiel, Richie
(o recém oscarizado Adrien Brody), um filho do bairro transformado
em "punk" e Ruby (Jennifer Esposito), namorada de Richie
e desprezada por todos. O próprio Spike Lee aparece no papel
de um repórter de televisão encarregado de cobrir
o caso do "Filho de Sam".
Nova Iorque está em estado de sítio.
As pessoas têm medo de sair de casa, as raparigas de cabelo
castanho, alvos preferenciais do "serial killer", pintam
o cabelo de louro ou passam a usar peruca e muitos bares e discotecas
fecham por falta de clientes. Vinny vive no terror de ser apanhado
pelo assassino, por pensar que este o pode identificar, enquanto
Richie, dividido entre a atitude "punk" e a prostituição
homossexual para ganhar dinheiro, é o principal suspeito
de uma comunidade intolerante em aceitar as suas diferenças.
Sem soluções para encontrar o culpado,
um agente da polícia do bairro (Anthony LaPaglia) pede ajuda
ao "don" local (Ben Gazzara), que imediatamente toma em
suas mãos a tarefa de capturar o criminoso, como um "mafioso"
reconvertido em altruísta guardião da comunidade.
Forma por sua própria iniciativa esquadrões de caça
onde cada um tem o seu suspeito, desde o padre da paróquia,
o empregado da pizzaria com ar estranho e a "estrela"
dos Yankees Reggie Jackson, passando por qualquer estranho que apareça
nas redondezas.
Entretanto, o "Filho de Sam" continua a
matar pelas ruas de Nova Iorque e escreve ao mais famoso jornalista
da cidade para se gabar dos seus feitos e justificar os assassínios
com as ordens que recebeu do cão do seu vizinho. "Não
pertenço à terra. Levem-me para o meu planeta",
pedia Berkowitz numa das cartas. O seu desejo foi cumprido e, 25
anos depois de ter sido condenado, continua preso e vive em constante
arrependimento como um "cristão renascido".
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