Morrer
em Las Vegas
Por Vasco T. Menezes
Almas perdidas Uma descida aos abismos do desespero humano.
É assim “Morrer em Las Vegas”, uma bela e invulgar
história de amor entre um alcoólico e uma prostituta.
“Alguma vez tiveste a sensação
de que o mundo fugiu, deixando-te para trás?” É
com estas palavras, cantadas por Sting, que entramos em “Morrer
em Las Vegas” (1995), de Mike Figgis. Para o caso pouco importa
que esta canção do ex-Police (tal como as outras que
se irão ouvir ao longo do filme) não seja particularmente
estimulante. O que interessa aqui sublinhar é a sua função:
estamos perante um lamento, que no fundo funciona como um mau agoiro
e estabelece o tom para tudo o que se seguirá.
Ainda as primeiras letras do genérico inicial desfilam sobre
o fundo a negro do ecrã e já ficámos com a
sensação de que a história a que vamos assistir
não será das mais felizes, daquelas em que a exaltação
do espírito humano e o triunfo emocional têm lugar
garantido.
E o que vemos, então, a seguir? Simplesmente, um homem que
caiu num buraco sem fundo: Ben Sanderson (Nicolas Cage), argumentista
de Hollywood e bêbado decrépito em processo de decadência
avançado. Pálido, com o hálito a tresandar
a álcool, não parece sequer alimentar-se de outra
coisa, bebendo de manhã à noite sem parar, num estado
de embriaguez crónica que até já inclui ataques
de “delirium tremens”...
Abandonado pela mulher e filho — antes ou depois de ter começado
a beber, nunca o saberemos (e de facto, que interessa?) e ele próprio
diz já não conseguir (ou querer) lembrar-se —,
erra, angustiado, pela noite dentro. Tornou-se um incómodo
para os amigos — nem sequer o tentam demover, apenas se querem
ver livres dele quando lhes vem pedinchar dinheiro para mais algumas
bebidas — e, pelo que podemos ver numa das suas deambulações
nocturnas pelos bares de Los Angeles, os dotes de conquistador já
não são o que eram: as mulheres também já
não parecem querer nada com ele...
É um “farrapo humano” (parafraseando o título
português do clássico de Billy Wilder, “The Lost
Weekend”, de que este filme é uma espécie de
revisão actualizada), alguém que “está
doente”. Só que essa “doença”, se
bem que apresente contornos ou consequências físicas,
assumirá sobretudo as características de um profundo
mal-estar existencial: quando o vemos acordar, a meio da noite,
no chão da cozinha, ao lado do frigorífico aberto,
percebemos que já não há ali qualquer vontade
de viver ou réstia de auto-estima. A suspeita inicial transforma-se
então em certeza: fomos convidados a presenciar a aniquilação
de um homem, que se destrói, metódica e voluntariamente,
com uma assustadora compulsão suicida. No final desta espécie
de prólogo, Ben é despedido, algo que para ele é
quase uma bênção, pois com o dinheiro da compensação
vai poder financiar aquilo em que já pensava há muito,
a viagem (sem direito a regresso) até Las Vegas: da cidade
dos anjos para a cidade da perdição, ou a capital
do vício, inferno na terra, como cenário ideal para
quem procura “beber até morrer”. Posto em marcha
o destino inelutável da personagem, regressa finalmente o
genérico. Passaram 15 minutos de filme e o que vimos atrás
serviu apenas de introdução para o que é de
facto decisivo aqui — o encontro entre Ben e Sera (Elisabeth
Shue), a prostituta com coração de ouro. Ben e Sera,
duas almas gémeas É algo que, embora aconteça
de forma aparentemente acidental, por entre as ruas iluminadas pelo
brilho dos néons de Las Vegas, não poderia estar mais
predestinado. Porque acontece entre duas almas gémeas, “losers”
que a vida abandonou, esquecidos por tudo e todos. Se a existência
de Ben, quase um fantasma que já não pertence a este
mundo (por isso, antes de se mudar, desfaz-se dos pertences, levanta
todo o dinheiro e abandona a casa, para apagar os últimos
vestígios de uma vida que no fundo já terminou), é
miserável, a de Sera não é melhor. Utilizada
e humilhada de forma constante, mero pedaço de carne para
ser alugado, a sua degradação é total e, à
sua maneira, também se está a destruir, ao mesmo ritmo
alucinante de Ben. “A maior parte do tempo, sou uma equação:
30 minutos do meu corpo custam 300 dólares”, diz ela.
Assim, entre um homem que se está a matar, mas não
sabe porquê (apenas que o quer), e uma mulher farta de estar
sozinha, nasce uma comovente ligação, primeiro de
amizade, depois de amor. Um amor intenso e “platónico”,
que se baseia não na componente sexual (aliás, até
bem perto do fim, inexistente), mas na interdependência total
entre duas pessoas que precisam desesperadamente uma da outra e
que, por um breve instante, se tocam e ajudam mutuamente, mitigando
uma solidão irremediável. Aceitam-se um ao outro sem
fazer juízos morais e sem nenhum esperar que o outro mude
e é isso que é desarmante numa relação
condenada ao fracasso.
Tal como eles, também nós nunca duvidamos de que Ben
acabará por morrer, levando avante o suicídio alcoólico
programado. Ao contrário do que acontecia em “The Lost
Weekend”, em que o amor de Jane Wyman acabava por salvar Ray
Milland, o final não trará qualquer salvação,
apenas a resignação em face da derrota. Aliás,
nem poderia ser de outro modo nesta tragédia urbana.
Mas, se o amor de Sera não salva Ben, traz-lhe pelo menos
a tão almejada paz, o que já não é pouco:
deitado na cama, antes de soltar o último suspiro, olha para
o lado e percebe que não morrerá sozinho, pois Sera
não o abandonará e ficará com ele até
ao fim. É essa vontade inabalável de levar até
às últimas consequências a lógica crua
de uma história lúgubre e triste (mas, ainda assim,
bafejada por uma desopilante veia de humor negro) e de a documentar
com doloroso realismo que faz do filme de Figgis um objecto a ter
em atenção, ainda para mais num tempo em que os finais
felizes, por mais inverosímeis que sejam, parecem ser cada
vez mais a única solução possível…
Como explicar então o surpreendente (e louvável) sucesso
de “Morrer em Las Vegas”? Talvez pela honestidade a
toda a prova que revela, para a qual muito contribuem as notáveis
interpretações de Nicolas Cage e Elisabeth Shue. Num
filme que é acima de tudo uma fulgurante “character
piece”, os actores são extraordinários. Cage,
em particular, é magnífico, construindo com serenidade
absoluta uma personagem nos antípodas do (fabuloso) histrionismo
maníaco que até aí era a sua imagem de marca.
Shue também não lhe fica atrás, num admirável
registo de “underacting” demonstrativo de um talento
luminoso que os produtos menores por onde andava perdida não
podiam deixar antever. Os tempos de estrela adolescente de filmes
como o primeiro “Karate Kid” (1984) já iam longe
e quase ninguém se lembrava dela. Sera significou a ressurreição
de uma carreira, que, infelizmente e depois de uma série
de escolhas pouco felizes, parece hoje à beira de um novo
esquecimento...
|