Um final felyz
São
os últimos cartuchos da série Y Parte II, que promete
despedir-se em beleza com um verdadeiro quarteto de luxo: Nanni
Moretti, Fernando Lopes, François Ozon e Jean-Pierre Jeunet.
“Happy end”, pois claro.
Já se sabe, tudo está bem quando acaba bem. E no
que diz respeito à série Y Parte II, essa velha máxima
vem mesmo a calhar, embora, verdade seja dita, em termos de qualidade
as coisas nunca tenham corrido mal na colecção de
DVD do PÚBLICO, antes pelo contrário.
Assim, depois de nos ter permitido mergulhar nos universos singulares
de autores consagrados como David Lynch, Emir Kusturica ou Pedro
Almodóvar, viajar por objectos notáveis como “Verão
Escaldante”, “Paris, Texas” e “O Gosto dos
Outros”, ou recordar tempos passados do cinema português,
através de um trio de clássicos da comédia
lusitana, a colecção propõe agora, para o seu
último mês, um conjunto de títulos emblemáticos
da mais recente produção cinematográfica (a
excepção será mesmo o DVD de hoje, a versão
de “Cyrano de Bergerac” de Jean-Paul Rappeneau, no já
longínquo ano de 1990).
Um óptimo exemplo disso mesmo é o filme da próxima
semana, o mega-sucesso à escala planetária (tornou-se
o filme francês mais lucrativo de sempre nos EUA, tendo conseguido
no país natal mais de oito milhões de espectadores)
que dá pelo nome de “O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain” (2001), de Jean-Pierre Jeunet. Será quase
desnecessário contar a história, já que praticamente
todos a conhecem, mas aqui vai, para benefício dos mais distraídos:
Amélie (Audrey Tautou, que de desconhecida passou a superestrela,
evocando mesmo comparações com a grande Audrey Hepburn
e originando uma multiplicação de cortes de cabelo
iguais ao seu, um pouco por todo o lado), empregada de um café
parisiense, romântica sonhadora e solitária e produto
de uma família disfuncional, resolve – após
a morte da Princesa Diana, sinal de que a vida pode ser fugaz –
ajudar e trazer felicidade aos que estão à sua volta,
vizinhos e clientela, e no caminho acaba por encontrar o amor (sob
a forma do realizador e actor Mathieu Kassovitz). Foi o regresso
triunfal (apesar das – infundadas – acusações
de reaccionarismo face a uma Paris de postal, “limpa”
de lixo e “graffitis”) de Jeunet a França depois
da infeliz experiência americana de “Alien 4”,
com uma divertida comédia romântica, em jeito de fábula,
bastante mais leve e optimista do que os filmes de culto “negros”
que assinara com Marc Caro, “Delicatessen” e “A
Cidade das Crianças Perdidas”.
E se aí se assiste a uma inesperada viragem na obra de um
cineasta, o que dizer de “Oito Mulheres” (2002) e do
seu realizador, François Ozon? Prolífico (e, já
agora, misógino) como poucos, o actual “enfant terrible”
do cinema francês tem-se dedicado a saltitar alegremente,
durante a ainda curta carreira, de género para género
e estilo para estilo, tornando impossível (ou pelo menos
difícil) a sua “catalogação”. Se
em obras anteriores piscara o olho a John Waters e Fassbinder, aqui
atira-se de cabeça ao cinema de Cukor e (principalmente)
Sirk, cruzando-os com um “whodunit” (ou “quem
matou”, à boa portuguesa) “à la”
Agatha Christie e arranjando ainda tempo para convocar também
a memória dos musicais de Jacques Demy, como “Os Chapéus
de Chuva de Cherburgo” ou “As Donzelas de Rochefort”,
com a recriação de alguns sucessos imortais da “chanson
française”. O resultado é uma brincadeira cinéfila
que se vê com enorme prazer, um exercício de estilo
sensual, “kitsch” e “camp”, com provocação
e perversidade q.b., reunindo um fulgurante elenco de actrizes –
da “anciã” Danielle Darrieux às “querubins”
Virgine Ledoyen e Ludivine Sagnier, passando por Catherine Deneuve,
Fanny Ardant, Isabelle Huppert ou Emmanuelle Béart –,
mais próximo da leveza de “Sitcom” do que da
seriedade de “Sob a Areia”.
E por falar em coisas sérias, viajemos de França
para Itália, ao encontro de “O Quarto do Filho”
(2001), drama pungente sobre uma família, igual a tantas
outras, a braços com a tragédia da morte do filho
adolescente. E quem assina este belíssimo tratado de serenidade
e subtileza, de um minimalismo rigoroso que não permite quaisquer
concessões ao sentimentalismo ou ao “choradinho”
fácil? Nem mais nem menos que Nanni Moretti. O irresistível
narcisista, “inimigo número um” de Berlusconi,
enceta um surpreendente golpe de rins e, por uma vez (será
a última?), deixa de lado a política e a exposição
humorística das suas obsessões, em favor da gravidade
e de uma abordagem mais clássica, mais próxima do
formato narrativo do que dos anteriores “esboços”
autobiográficos – como “Querido Diário”
ou “Abril”, por exemplo –, mesclas irónicas
de documentário e ficção. Palma de Ouro em
Cannes, o filme marcou a consagração definitiva de
Moretti como um dos autores mais importantes do actual cinema italiano,
com o realizador a ser recebido como um herói no seu país,
conquistando mesmo aqueles que não morrem propriamente de
amores pelas suas ideias esquerdistas... Por fim, “last but
not the least”, um último representante nacional, por
sinal bastante moderno: “O Delfim” (2002), a adaptação,
por Fernando Lopes, do romance mítico (e um dos mais fundamentais
da ficção portuguesa contemporânea) de José
Cardoso Pires, com argumento da autoria de Vasco Pulido Valente.
O fim de um tempo – o do Portugal salazarista de há
trinta e poucos anos, ainda mais rural do que urbano –, um
casal ensombrado pelo destino da (sua) tragédia e uma obra
admirável, com uma prodigiosa dupla de actores, Rogério
Samora e Alexandra Lencastre, a dar corpo a personagens “bigger
than life”, Tomás Manuel Palma Bravo, dito o Delfim,
e Maria das Mercês, a que se junta a superlativa fotografia
de Eduardo Serra. Foi o regresso ao cinema do autor dos clássicos
“Belarmino” e “Uma Abelha na Chuva”, nove
anos depois de “O Fio do Horizonte”, e fecha com chave
de ouro a série Y Parte II, podendo mesmo servir de “aperitivo”
para o próximo e muito aguardado “Lá Fora”,
o reencontro de Lopes com Lencastre e Samora.
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