Mulher
à Beira de Um Ataque de Nervos
Por Vasco T. Menezes
As relações familiarese pessoais
por Pedro Almodóvar. No centro desta comédia de humor
absurdo, uma dona se casa viciada em anfetaminas, cola e detergente.
Escabroso e grotesco, mas também hilariante e comvente.
Gloria (Carmen Maura), dona de casa madrilena, leva
uma vida difícil: para além de ter de se preocupar
em pagar as contas do gás, água e electricidade (em
vias de serem cortados), divide ainda o apartamento, exíguo
e sobrelotado, com o marido insensível, Antonio (um taxista
com dotes de falsificador), dois filhos ainda pré-adolescentes
mas bastante "avançados" (o mais velho, Toni, trafica
droga, e o outro, Miguel, deita-se com o pai de um colega de escola)
e a sogra diabética e avarenta que vende água com
gás e madalenas, fechadas à chave num armário,
aos restantes membros da família.
Não admira por isso que Gloria seja viciada
em anfetaminas (é preciso arranjar toda a energia possível
para conseguir ainda trabalhar como mulher-a-dias) nem que cheire
cola ou detergente, a única maneira de encontrar a paz no
caos que a rodeia.
É esta a existência tragicómica
da protagonista de "Que Fiz Eu Para Merecer Isto?" (1984),
o quarto filme de Pedro Almodóvar. Nele se estabelece uma
complexa teia de relações pouco (ou nada) ortodoxas,
através de um enredo tresloucado que quase desafia a descrição,
carregado de momentos de enorme poder subversivo e movido por uma
energia caótica e sórdida, à época um
óbvio instrumento de ataque à repressão culturalmente
institucionalizada que ainda se fazia sentir no dealbar da Espanha
pós-franquista.
Serve isto para dizer que estamos perante um perfeito
exemplo do cinema feérico e provocador de Almodóvar,
principalmente o da primeira fase da carreira, quando a disponibilidade
do realizador para a ousadia e tácticas de choque estava
no auge. A título de exemplo, recordem-se as sátiras
sexuais iniciais - "Pepi, Luci, Bom e Outras Raparigas Como
a Mamã" (1980) e "Labirinto de Paixões"
(1982) -, os estudos sobre o desejo erótico e as diferentes
formas de amar, no brilhante "Matador" (1986) ou em "A
Lei do Desejo" (1987), e as observações violentamente
cáusticas da realidade à sua volta, nomeadamente os
olhares "terroristas" sobre o catolicismo - "Negros
Hábitos" (1983) - e os "media" - o mal-amado
"Kika" (1993).
Em "Que Fiz Eu...", Almodóvar utiliza
então as suas peculiares sensibilidades para traçar
o retrato de uma família disfuncional, no qual são
visíveis as habituais marcas do cineasta. Desde logo, o gosto
pelo "kitsch", presente não só nas cores
primárias do genérico (repetidas depois nas luzes
dos néons publicitários que banham constantemente
a casa de Gloria, dando-lhe fortes tonalidades vivas de azul e vermelho),
mas também nos episódios do anúncio de TV e
da canção que nela vemos ser interpretada (em "playback",
pelo próprio Almodóvar e Fanny McNamara, elementos
de um lendário duo "pop" travesti do início
dos anos 80...).
Depois, aliado a esta exuberância visual, o
cultivar de um tipo de humor singular, entre o grotesco e o escabroso,
que não recua perante o risco do mau gosto, antes o acolhe
de forma deliberada (veja-se a cena em que Toni vomita em cima da
avó e recorde-se que uma das principais influências
de Almodóvar é o amigo John Waters, o "papa"
do "trash"). Finalmente, a opção por uma
narrativa dinâmica, com os "gags" divertidíssimos
a sucederem-se em cenas curtas e incisivas que o realizador monta
com mestria.
Mas não é só a instituição
familiar que está debaixo de fogo, já que toda a sociedade
moderna (à deriva, de onde estão ausentes quaisquer
valores morais ou éticos) é dinamitada. A classe trabalhadora
será a principal visada (basta olhar para a inacreditável
família de Gloria; para Cristal, a prostituta viciada em
heroína que rouba cheques aos clientes; ou para a outra vizinha,
que martiriza a filha, Vanessa, por esta lhe lembrar o marido que
a abandonou), mas os estratos mais elevados (o casal de escritores
alcoólicos e falhados - ele considera-se um "azarado",
ela é cleptomaníaca - e a cantora Ingrid Müller
- "a Juliette Greco alemã" -, diva acabada, por
quem António está perdidamente apaixonado, à
beira do suicídio) também não saem ilesos desta
paródia selvagem e perversa.
No centro de toda esta colecção de
excêntricas personagens, encontramos Gloria (fabulosa Carmen
Maura, a primeira diva de Almodóvar), uma das figuras mais
fascinantes da obra do realizador espanhol: desejosa de escapar
a uma vida infernal de repressão, está constantemente
à beira do colapso, mas acaba sempre por exibir apenas uma
resignação cansada (é o expoente máximo
de um dos aspectos mais curiosos do filme: a forma lacónica
como todos encaram, com a maior das normalidades, a loucura à
sua volta).
Quando finalmente "explode" (mata o marido
com uma pata de presunto...), abrem-se as portas da libertação
e percebemos que o filme é, acima de tudo, a odisseia de
uma mulher em luta pela sua independência (aqui Almodóvar
diz-nos que, apesar do fim da ditadura, durante os primeiros anos
da Espanha democrática as mulheres ainda estavam longe de
ser livres).
É uma ideia que sai reforçada pelo
facto de as únicas personagens verdadeiramente negativas
serem duas figuras de autoridade masculinas: o energúmeno
marido de Gloria (para quem a mulher não passa de mero objecto
e que nem dá pela falta de Miguel quando este sai de casa,
depois de ter sido "adoptado" por um dentista pedófilo...)
e o polícia com problemas de impotência que chantageia
favores sexuais a Cristal, prometendo não a prender pelo
consumo de heroína.
Ao mesmo tempo burlesca e trágica (repare-se,
logo no início, no encontro sexual frustrado, muito "O
Último Tango em Paris", ou na música tristíssima
que acompanha a sofredora dona de casa nas suas deambulações
pelas farmácias, na vã tentativa de comprar as tão
necessárias "pastilhas"), Gloria é uma heroína
feminina (e feminista) de proporções clássicas.
A única relação significativa estabelece-se
entre ela e Vanessa (que exibe estranhos poderes mentais, numa deliciosa
referência ao "Carrie" de De Palma), naquele que
é o momento mais comovente do filme: "Então,
adopto-te eu a ti", responde-lhe a criança depois de
Gloria ter dito que não a podia adoptar por também
não ser boa mãe.
Quando a sogra (fanática religiosa que leva
para casa um lagarto a quem chama "Dinheiro", por ser
aquilo de que mais gosta, "além de madalenas, sacos
de plástico e cemitérios") e Toni partem para
a aldeia (para construir um rancho, ideia surgida depois de verem
no cinema o "Esplendor na Relva", de Kazan, noutra citação
saborosa de Almodóvar), Gloria assume-se finalmente como
dona do seu destino (algo que não é contrariado pelo
regresso de Miguel: será mais uma recompensa, a prova de
amor que até então nunca tinha sido dada).
Fica assim cumprido o programa desta comédia
negra escandalosamente divertida, um híbrido que mistura,
com assinalável mestria, os mais diversos registos, da farsa
ao melodrama, do fantástico ao puro delírio surreal.
O resultado poderia mesmo inscrever-se num novo género, o
"surrealismo (ou irrealismo) social"...
Por razões que nos são alheias,
“Que Fiz Eu para Merecer isto?” substitui “A Lei
do Desejo”, também de Pedro Almodóvar, que chegou
a estar anunciado na Série Y.
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