"Miúdos",
de Larry Clark
Por Vasco T. Menezes
Um olhar impiedoso sobre a adolescência
que fica como um dos momentos incendiários do cinema dos
anos 90
Telly (Leo Fitzpatrick), um adolescente
nova-iorquino, é conhecido como “the virgin surgeon”
(qualquer coisa como “o cirurgião especialista em virgens”).
Fica-lhe bem a alcunha, já que tem por “missão”
na vida desvirginar o maior número de raparigas possível,
a maior parte ainda a caminho da adolescência (“novas
e puras: são a visão da perfeição, um
objecto sagrado”).
Apesar de estar longe de ser o típico “quebra-corações”
– é um magricelas borbulhento, de dentes saídos
e voz irritante –, consegue convencer e seduzir as “vítimas”,
aproveitando-se da inocência destas. A sua existência
resume-se a estes feitos e à narração, gabarolas
e em vivo detalhe, dos mesmos a Casper (impressionante Justin Pierce),
o amigo inseparável.
Segundo o raciocínio de Telly, se apenas tiver
relações sexuais com virgens não terá
de se preocupar com a sida, nem com coisas maçadoras como
preservativos... Acontece que uma das conquistas, Jennie (o primeiro
papel de Chloë Sevigny, futura diva do cinema “indie”),
que apenas esteve com ele, descobre estar infectada e resolve ir
à sua procura pela cidade...
“Miúdos/Kids” (1995) é
um dos objectos cinematográficos mais inquietantes da década
passada, que provocou ondas de choque e indignação
um pouco por todo o lado. Foi a estreia na realização,
aos 52 anos, do polémico fotógrafo Larry Clark, que
transpôs para o cinema as coordenadas que já estavam
presentes nas experiências anteriores no campo da fotografia,
em “Tulsa” (1971), “Teenage Lust” (1982)
ou “Perfect Childhood” (1992): um fascínio obsessivo
pelo mundo turbulento da adolescência, inspirado em parte
pela sua própria juventude, não raras vezes violenta
e perigosa.
O resultado são 24 horas na vida de um grupo
de adolescentes e uma obra que rejeita a tradicional “história”
em favor de uma abordagem quase documental: ficamos com o retrato
brutal e sem concessões de um mundo amoral, em que os “kids”
– hedonistas juvenis deixados à deriva por pais ausentes
ou ineficazes – se destroem com avassaladora pulsão
niilista. A “interpretá-los” está um notável
elenco de “actores” – recrutados pelo realizador
nas ruas, discotecas e parques da cidade – que em muito contribui
para a sensação de sufocante “realismo”
do filme (que iria depois ser levado ao extremo pelo argumentista
Harmony Korine, “wonderkid” tornado também ele
“realizador controverso”, nos inclassificáveis
“Gummo” e “Julien Donkey-Boy”).
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