Deus das Moscas
William Golding


 


Prémio Nobel
1983


 

Comentário
A Invenção do Mal
José Vítor Malheiros

"O Deus das Moscas" é, de alguma forma, um livro fruto da sua época, um pós-guerra que viu as barbaridades dos fascismos e da Segunda Guerra, o Holocausto, a bomba, o estalinismo e a tensão da Guerra Fria e ainda não tinha experimentado o bem-estar do crescimento económico que viria.

Um numeroso grupo de crianças vai dar a uma ilha deserta e vê-se obrigado a sobreviver pelos seus próprios meios. A ilha é um paraíso tropical coberto de vegetação, algures no Pacífico, onde as árvores estão permanentemente carregadas de frutos, onde há água doce em abundância, onde a praia de areia branca está protegida dos perigos do mar alto pelo arco perfeito de um recife de coral, onde não há animais selvagens nem outros perigos visíveis.

A história podia ser uma aventura de Robinsons, cheia de engenho e energia juvenis, de solidariedade e de produtiva camaradagem, mostrando a vitória do homem sobre si próprio e sobre os elementos, uma história de sobrevivência capaz de nos fazer sonhar, como a literatura juvenil já nos deu tantas. Mas "O Deus das Moscas", de William Golding, não é nada disso. Há um perigo que ameaça os novos habitantes da ilha e esse perigo é o mais impiedoso dos predadores: eles próprios.

"O Deus das Moscas" é um romance pessimista onde o homem - no seu formato mais inocente, a criança - é colocado em confronto consigo mesmo e perde. Perde mesmo quando tudo à sua volta conspira para que ganhe, quando o mundo não é inóspito, quando o clima não é inclemente, quando a sociedade não é repressiva, quando os recursos não são escassos. Estas crianças britânicas, civilizadas, disciplinadas, educadas, lançadas neste éden terrestre, vão reinventar o mal e o medo.

O quadro mais amplo da narrativa não é mais optimista. Golding coloca a sua história num contexto de guerra - talvez mesmo de hecatombe nuclear -, apenas sugerido em duas ou três pinceladas para não nos fazer divergir a atenção do "huis clos" da ilha. A dado momento, uma criança faz mesmo uma referência ao risco de poderem ser feitos prisioneiros pelos "vermelhos" (o livro foi publicado em 1954), para nos dar uma pista quanto aos protagonistas do conflito, mas tudo isso se passa longe da geografia e da mente das crianças e não perturba o quotidiano da ilha.

Para o quadro da sua fábula (porque se trata de uma fábula sobre a maldade intrínseca do homem) Golding inspirou-se em "Coral Island" (1858) de R.M. Ballantyne, que é aliás citado em "O Deus das Moscas". E o livro também faz pensar em "Dois anos de férias", de Jules Verne, raramente citado em relação a "O Deus das Moscas" por razões de Canal da Mancha. Mas onde nos outros livros se encontra esperança e optimismo, Golding substitui-os por um enraizado cepticismo, que também se encontra nas suas outras obras ("The Inheritors", 1955; "Free Fall", 1959; "The Spire", 1964). "O homem produz o mal, como uma abelha produz mel", dizia Golding (1911-1993), que conquistou o prémio Nobel da Literatura em 1983.

"O Deus das Moscas" desenvolve-se ao longo de um crescendo onde os resquícios de civilização, da disciplina do antigo mundo habitados pelos miúdos, vão desaparecendo ao mesmo tempo que se desfazem os farrapos dos seus uniformes de colégio, para dar origem a uma redescoberta da selvajaria. A violência de "O Deus das Moscas" não nasce da necessidade de sobrevivência, da fome, da auto-defesa, da defesa do território e muito menos das pulsões sexuais ou da defesa da família. A violência floresce, ritualmente, para esconjurar um medo irracional, como forma de afirmação própria e do grupo, fruto de rivalidades internas, gratuitamente, estupidamente, sem causas que se possam chamar razões. A nova sociedade que nasce na ilha não tem inocência nem aprende com os erros da anterior.

"O Deus das Moscas" é, de alguma forma, um livro fruto da sua época, um pós-guerra que viu as barbaridades dos fascismos e da Segunda Guerra, o Holocausto, a bomba, o estalinismo e a tensão da Guerra Fria e ainda não tinha experimentado o bem-estar do crescimento económico que viria. Mas o livro, com as diversas leituras que pode suscitar (reinvenção do pecado original, crítica do poder, apelo ao humanismo), tornou-se uma referência incontornável e continua a inspirar novas abordagens.