Deus das Moscas
William Golding


 


Prémio Nobel
1983


 

As primeiras páginas de "O Deus das Moscas"

1
A voz do búzio

O garoto de cabelo cor-de-mel agachou-se, deixou-se escorregar ao longo do último troço do rochedo e encaminhou-se para a lagoa. Embora tivesse tirado o blusão, parte do seu uniforme escolar, e o arrastasse agora pela mão, a camisa cinzenta colava-se-lhe à pele e o cabelo encodeava-se-lhe na testa. À sua volta, a funda clareira rasgada na selva era um banho de calor. Rompia pesadamente por entre as lianas e os troncos quebrados, quando um pássaro, uma visão de vermelho e amarelo, cintilou numa fuga para o alto com um grito de feitiço. A este grito o eco respondeu com outro.
- Eli! - disse uma voz. - Espera um momento!
O matagal, num dos bordos da clareira, agitou-se e uma saraivada de gotas de água caiu com estridor.
- Espera um momento - repetia a voz. - Estou aqui preso.
O garoto de cabelo cor-de-mel abaixou-se e repuxou as peúgas com um gesto automático que fez com que a selva por um momento se parecesse com os condados ingleses.
A voz ouvia-se de novo.
- Nem me posso mexer com todas estas trepadeiras.
O dono da voz emergiu, esbracejando com o restolho alto, de modo que os ramalhos vibraram contra uma pala sebenta. As rótulas nuas dos joelhos eram grossas e tinham sido apanhadas e arranhadas por espinhos. Debruçou-se, tirou cuidadosamente os espinhos e voltou-se. Era mais baixo que o garoto louro e muito gordo. Adiantou-se, buscando piso seguro para os pés, e olhou então através dos óculos de lentes grossas.
- Onde está o homem com o megafone? O rapazinho louro abanou a cabeça.
- Estamos numa ilha. Pelo menos assim parece. Um recife no meio do mar. Talvez até não haja aqui gente crescida.
O gorducho olhou com um ar surpreendido.
- Havia o piloto. Mas não estava com os passageiros, estava à frente, na cabina.
O garoto de cabelo cor-de-mel mirava o recife, de olhos franzidos.
- E todos os outros miúdos... - prosseguia o gordo. - Alguns deles devem ter escapado, não é verdade?
O rapaz louro começou a dirigir-se para a água tão casualmente quanto lhe era possível. Procurava estar à vontade e não se mostrar excessivamente desinteressado, mas o gorducho correu atrás dele.
- Mas não há aqui gente crescida? - Creio que não.
O garoto de cabelo cor-de-mel disse isto solenemente, mas de súbito subjugou-o o prazer de uma ambição realizada. Fez o pino no meio da clareira e riu-se para a figura invertida do companheiro.
- Não há gente crescida!
O gordo pensou um momento. - O piloto.
O louro deixou que os pés tocassem o solo e sentou-se na terra que revessava humidade.
- Deve ter continuado a voar depois de nos ter lançado. Não podia aterrar aqui. Pelo menos num avião com rodas.
- Fomos atacados. - Há-de cá voltar. O gorducho abanou a cabeça.
- Quando começámos a descer, espreitei por uma das vigias. Vi a outra parte do avião. Estava em chamas.
Olhou demoradamente toda a clareira. - E tudo isto foi causado por um tubo.
O louro estendeu o braço e tocou no rebordo dentado de um tronco. Por um momento pareceu interessado.
- E que foi que lhe aconteceu? - perguntou ele. - Para onde foi agora?
- A tempestade arrastou-o para o mar. Era bem perigoso com todos os troncos de árvores a caírem. Ainda devem estar dentro do avião alguns miúdos.
Hesitou por um momento e depois tornou a falar. - Como te chamas?
- Rafael.
O gorducho esperou que o outro, por seu turno, lhe perguntasse o nome, mas uma tal proposta de apresentação não foi feita. O rapazinho louro, que se chamava Rafael, sorriu vagamente, ergueu-se e recomeçou a caminhar para a lagoa. O gordo colava-se-lhe persistentemente ao ombro.
- Creio que há muitos como nós espalhados por aí. Não viste outros por aí, pois não?
Rafael abanou a cabeça e apertou o passo. Depois tropeçou numa ramada e caiu com estrondo.
O gordo estava de pé diante dele, respirando fundo.
- A minha tia disse-me que não corresse - explicou ele -, por causa da asma.
- As-ma?
- Sim. Não tenho fôlego. Na nossa escola era o único que tinha asma - disse o gorducho com uma pontinha de orgulho. - E uso óculos desde os três anos.
Tirou os óculos e mostrou-os a Rafael, pestanejando e sorrindo, e começou a limpá-los na pala sebenta. Uma expressão de dor e concentração interior alterou-lhe os pálidos contornos do rosto. Enxugou o suor da face e ajustou rapidamente os óculos ao nariz.
- Fruta.
Olhou à volta da clareira.
- Fruta - exclamou ele. - Espero...
Tocou nos óculos, afastou-se de Rafael e agachou-se no meio da folhagem enriçada:
- Eu volto já... num segundo...
Rafael desenvencilhou-se cuidadosamente e escapuliu-se por entre as ramadas. Dentro de segundos podia ouvir atrás de
si os grunhidos do gordo, que se precipitava para a barreira que ainda o separava da lagoa. Trepou a um tronco quebrado e saiu da selva.
A costa estava debruada de palmeiras. Subiam erectas ou inclinadas, ou reclinadas contra a luz, e adejavam no ar a sua coma verde a uma altura de trinta metros. O terreno a seus pés era um talude coberto de uma ervagem áspera, retalhado a toda a largura pelas vicissitudes de troncos derrubados de mistura com cocos sorvados e rebentões de palmeira. Por trás de tudo isto havia a escuridão própria da floresta e a mancha branca da clareira. Rafael quedou-se, com uma das mãos apoiada num tronco pardo, e franziu mais uma vez os olhos contra a água rebrilhante. Lá fora, talvez a uma milha de distância, salseiros de espuma babujavam uma ilha de coral, e mais além o vasto mar era de um azul-ferrete. Dentro do arco irregular de coral, a lagoa era ainda como um lago das montanhas - azul de todos os matizes, verde-sombreado e púrpura. A praia entre o terraço de palmeiras e a água era uma fina aduela, aparentemente interminável, pois à esquerda de Rafael, as perspectivas do palmar, da praia e da água reduziam-se a um ponto de infinidade; e sempre, quase visível, havia o calor.
Saltou do terraço. A areia era grossa sob os sapatos pretos e o calor vergastou-o. Deu-se conta do peso da roupa: num sacão, vigorosamente, descalçou os sapatos e arrancou as peúgas com a liga de elástico num só movimento. Em seguida subiu para o terraço, despiu a camisa e quedou-se no meio dos cocos em forma de caveira, com as sombras verdes das palmeiras e da floresta a deslizarem-lhe sobre a pele. Desapertou a fivela do cinto em feitio de serpente, tirou as calças e as cuecas e ficou ali, nu, a mirar a praia e a água faiscantes.
Era já um rapazinho espigadote, doze anos e alguns meses, para ter perdido o estômago proeminente da infância, mas não tinha ainda a idade suficiente para a adolescência o ter tornado desajeitado. Poderia ver-se agora que talvez viesse a ser um pugilista, a julgar pela arca do peito e a largura dos ombros, mas havia uma suavidade na linha dos lábios e nos olhos que não prenunciava o demónio. Acariciava brandamente o tronco da palmeira
e, forçado por fim a acreditar na realidade da ilha, tornou a rir deliciado e fez o pino. Pôs-se agilmente de pé, correu ao longo do areal, ajoelhou-se e atirou duplos punhados de areia contra o peito. Depois sentou-se e ficou a olhar para a água com os olhos brilhantes e exaltados.
- Rafael...
O gordo agachou-se no terraço e sentou-se cautelosamente, usando o rebordo para assento.
- Desculpa esta grande demora. A fruta...
Limpou os óculos e acavalou-os no nariz achatado. A armação deixara no alto do nariz um fundo vinco rosado em forma de V Contemplou criticamente o corpo bronzeado de Rafael e a sua própria roupa. Pôs a mão na pega dum fecho éclair que lhe corria ao longo do peito.
-A minha tia...
Com decisão abriu o fecho éclair e puxou a pala inteira sobre a cabeça.
- Pronto!
Rafael mirou-o de soslaio e não disse nada.
- Com certeza que deves querer saber os nomes de todos eles - começou o gordo - para fazer uma lista. Temos de fazer uma reunião.
Rafael pareceu não entender a sugestão e o gorducho foi obrigado a continuar.
- Não me importo nada que me chamem o que quiserem, contando que me não chamem o que me chamavam na escola. Rafael estava vagamente interessado.
- Que é que te chamavam?
O gordo olhou por cima do ombro e depois debruçou-se para Rafael. Segredou:
- Costumavam chamar-me Bucha. Rafael rebentou de riso. Deu um salto. - Bucha! Bucha!
- Rafael... fazes o favor...
O Bucha apertou as mãos num gesto apreensivo. - Eu disse que não queria...
- Bucha! Bucha!