Deus das Moscas
William Golding


 


Prémio Nobel
1983


 

Colecção Mil Folhas
Quando a Desordem Vence as Regras
Marisa Torres da Silva

"O Deus das Moscas", de William Golding, é um romance do pós-guerra pautado pela actualidade dos temas que aborda. É o mal em estado puro que se apodera das criancinhas perdidas numa ilha sem nome, mas que também podia ser a história de toda a condição humana. O seu carácter alegórico e o cepticismo de Golding transforma "O Deus das Moscas" num romance intemporal.

À primeira vista, estamos perante um daqueles livros feitos à medida para rapazes adolescentes cuja rebeldia começa a despontar. O enredo parece simples, muito simples aliás: um grupo de rapazes encontra-se entregue a si mesmo numa ilha deserta, sem nenhum adulto por perto, na sequência de um desastre de avião, vendo-se obrigado a sobreviver. Paraíso? Não propriamente.

"O Deus das Moscas" marca a estreia de William Golding (1911-1993) como ficcionista, tornando-se um enorme "best-seller" nos finais da década de 50. Até 1954, data de publicação do romance, o nome de Golding era totalmente desconhecido do público - o livro foi recusado por 21 editoras -, familar apenas para um círculo muito restrito de leitores.

A problemática do livro reflecte o tempo actual, isto é, todo um sentimento de ausência de estruturas mentais e axiológicas, ocasionado pela conjuntura histórica do passado e do presente. Golding expõe, assim, a queda do humanismo liberal, dos inquestionáveis princípios da sociedade iluminista, da crença inabalável na racionalidade humana, perante a mutação para um mundo complexo e pleno de ameaças, abordando a luta irreversível entre o bem e o mal, entre a solidariedade e o barbarismo.

A desumanização e a degradação do homem são assim representadas em "O Deus das Moscas" por um grupo de rapazes abandonados à sua sorte no meio de um espaço insular sem nome nem espaço físico reconhecíveis. A ilha em que se encontram acaba por constituir um microcosmos do mundo real, uma representação de alguns dos problemas que assolam a actualidade.

Eram todos bons rapazes
Como uma espécie de capa do bolo que oculta o seu verdadeiro recheio, Golding serve-se da história dos rapazes para mostrar a linha ténue que existe entre a mente humana civilizada e os seus instintos mais violentos e básicos. Com efeito, o autor refere a vulnerabilidade dessa fronteira num discurso proferido na Universidade da Califórnia, em 1962: "Os rapazes tentam construir uma civilização na ilha; mas tudo termina em sangue e terror, porque eles sofrem de uma terrível doença, que é a de serem humanos."

Golding escreveu ainda a propósito do livro: "O tema é uma tentativa de descrever as falhas da sociedade, a partir dos defeitos da natureza humana. A moral da história é a de que a forma da sociedade depende da maturidade ética do indivíduo e não de um qualquer sistema político, mesmo aparentemente lógico e estável."

No final, é o caos que se proclama vencedor, numa revolta ilimitada contra toda a autoridade e regulamento. A bizarria dos sucessivos incidentes que ocorrem entre o grupo contribui para criar uma dolorosa atmosfera de pesadelo, que evoca reminescências não só do mais negro romantismo, mas também das tragédias gregas que Golding tanto admirava.

Não obstante a sua "ligação indefinível" com o líder Rafael, Jack, o rebelde por excelência do grupo, constitui o motor dessa revolta, conduzindo os seus seguidores para o culminar da brutalidade animalesca. Impulsionado pela sede de poder, "a autoridade sentara-se-lhe no ombro e garrulava-lhe ao ouvido como um símio."

Contudo, e à medida que a decadência moral da comunidade se vai tornando cada vez mais visível, há quem se tente agarrar e defender a todo o custo - mesmo que isso signifique o abdicar da própria vida - um resíduo de consciência liberal: falamos, obviamente, da personagem Bucha, apologista do saber científico como veículo de fuga ao medo. "Pode-se então admitir que tenhamos de recear tudo? A vida - declara o Bucha expansivo - é científica: é o que é. (...) A não ser que tenhamos medo das pessoas."

Símbolo desse medo é o Deus das Moscas, que dá título ao livro, referindo-se a uma cabeça de porco espetada num pau, que progressivamente se cobre de moscas. É a "fera" de quem os rapazes guardam um imenso temor e que representa o mal que deles se apodera, corroendo-os interiormente, até à apoteose final.

Simão protagoniza o primeiro encontro com a figura, "como uma bola negra", onde o movimento das moscas formava uma nuvem escura em torno da cabeça de porco. "Quanto mais Simão pensava na fera, tanto mais a sua visão interior lhe oferecia o quadro de um humano ao mesmo tempo heróico e enfermo."

Olhando para a comunidade de crianças de forma distanciada, observando os acontecimentos do ponto de vista de um narrador omnisciente, Golding apoia-se em processos de escrita cuja economia e sobriedade se fundem com uma linguagem viva e precisa. Os diálogos entre os rapazes conferem dinamismo ao enredo, ocultando, de um modo bastante subtil, a profundidade e a espessura da obra.

Apesar do sucesso de "O Deus das Moscas", o seu primeiro livro, publicado quando Golding contava 43 anos de idade, o autor não abandonou a sua visão da condição humana, no mínimo, plena de cepticismo: na obra seguinte, "The Inheritors", revisita os derradeiros dias do homem de Neanderthal, para reafirmar a fábula dos cruéis rapazes. Porque, tal como sublinhou, "o ser humano produz o mal como as abelhas produzem o mel."