Colecção
Mil Folhas
Quando a Desordem Vence as Regras
Marisa Torres da Silva
"O Deus das Moscas", de William Golding,
é um romance do pós-guerra pautado pela actualidade
dos temas que aborda. É o mal em estado puro que se
apodera das criancinhas perdidas numa ilha sem nome, mas que
também podia ser a história de toda a condição
humana. O seu carácter alegórico e o cepticismo
de Golding transforma "O Deus das Moscas" num romance
intemporal.
À primeira vista, estamos perante um
daqueles livros feitos à medida para rapazes adolescentes
cuja rebeldia começa a despontar. O enredo parece simples,
muito simples aliás: um grupo de rapazes encontra-se
entregue a si mesmo numa ilha deserta, sem nenhum adulto por
perto, na sequência de um desastre de avião,
vendo-se obrigado a sobreviver. Paraíso? Não
propriamente.
"O Deus das Moscas" marca a estreia
de William Golding (1911-1993) como ficcionista, tornando-se
um enorme "best-seller" nos finais da década
de 50. Até 1954, data de publicação do
romance, o nome de Golding era totalmente desconhecido do
público - o livro foi recusado por 21 editoras -, familar
apenas para um círculo muito restrito de leitores.
A problemática do livro reflecte o tempo
actual, isto é, todo um sentimento de ausência
de estruturas mentais e axiológicas, ocasionado pela
conjuntura histórica do passado e do presente. Golding
expõe, assim, a queda do humanismo liberal, dos inquestionáveis
princípios da sociedade iluminista, da crença
inabalável na racionalidade humana, perante a mutação
para um mundo complexo e pleno de ameaças, abordando
a luta irreversível entre o bem e o mal, entre a solidariedade
e o barbarismo.
A desumanização e a degradação
do homem são assim representadas em "O Deus das
Moscas" por um grupo de rapazes abandonados à
sua sorte no meio de um espaço insular sem nome nem
espaço físico reconhecíveis. A ilha em
que se encontram acaba por constituir um microcosmos do mundo
real, uma representação de alguns dos problemas
que assolam a actualidade.
Eram todos bons rapazes
Como uma espécie de capa do bolo que oculta o seu verdadeiro
recheio, Golding serve-se da história dos rapazes para
mostrar a linha ténue que existe entre a mente humana
civilizada e os seus instintos mais violentos e básicos.
Com efeito, o autor refere a vulnerabilidade dessa fronteira
num discurso proferido na Universidade da Califórnia,
em 1962: "Os rapazes tentam construir uma civilização
na ilha; mas tudo termina em sangue e terror, porque eles
sofrem de uma terrível doença, que é
a de serem humanos."
Golding escreveu ainda a propósito do
livro: "O tema é uma tentativa de descrever as
falhas da sociedade, a partir dos defeitos da natureza humana.
A moral da história é a de que a forma da sociedade
depende da maturidade ética do indivíduo e não
de um qualquer sistema político, mesmo aparentemente
lógico e estável."
No final, é o caos que se proclama vencedor,
numa revolta ilimitada contra toda a autoridade e regulamento.
A bizarria dos sucessivos incidentes que ocorrem entre o grupo
contribui para criar uma dolorosa atmosfera de pesadelo, que
evoca reminescências não só do mais negro
romantismo, mas também das tragédias gregas
que Golding tanto admirava.
Não obstante a sua "ligação
indefinível" com o líder Rafael, Jack,
o rebelde por excelência do grupo, constitui o motor
dessa revolta, conduzindo os seus seguidores para o culminar
da brutalidade animalesca. Impulsionado pela sede de poder,
"a autoridade sentara-se-lhe no ombro e garrulava-lhe
ao ouvido como um símio."
Contudo, e à medida que a decadência
moral da comunidade se vai tornando cada vez mais visível,
há quem se tente agarrar e defender a todo o custo
- mesmo que isso signifique o abdicar da própria vida
- um resíduo de consciência liberal: falamos,
obviamente, da personagem Bucha, apologista do saber científico
como veículo de fuga ao medo. "Pode-se então
admitir que tenhamos de recear tudo? A vida - declara o Bucha
expansivo - é científica: é o que é.
(...) A não ser que tenhamos medo das pessoas."
Símbolo desse medo é o Deus das
Moscas, que dá título ao livro, referindo-se
a uma cabeça de porco espetada num pau, que progressivamente
se cobre de moscas. É a "fera" de quem os
rapazes guardam um imenso temor e que representa o mal que
deles se apodera, corroendo-os interiormente, até à
apoteose final.
Simão protagoniza o primeiro encontro
com a figura, "como uma bola negra", onde o movimento
das moscas formava uma nuvem escura em torno da cabeça
de porco. "Quanto mais Simão pensava na fera,
tanto mais a sua visão interior lhe oferecia o quadro
de um humano ao mesmo tempo heróico e enfermo."
Olhando para a comunidade de crianças
de forma distanciada, observando os acontecimentos do ponto
de vista de um narrador omnisciente, Golding apoia-se em processos
de escrita cuja economia e sobriedade se fundem com uma linguagem
viva e precisa. Os diálogos entre os rapazes conferem
dinamismo ao enredo, ocultando, de um modo bastante subtil,
a profundidade e a espessura da obra.
Apesar do sucesso de "O Deus das
Moscas", o seu primeiro livro, publicado quando Golding
contava 43 anos de idade, o autor não abandonou a sua
visão da condição humana, no mínimo,
plena de cepticismo: na obra seguinte, "The Inheritors",
revisita os derradeiros dias do homem de Neanderthal, para
reafirmar a fábula dos cruéis rapazes. Porque,
tal como sublinhou, "o ser humano produz o mal como as
abelhas produzem o mel."
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