No país das boas notícias
31.08.2010 - 03:41 Por Teresa de Sousa
O crescimento do Brasil está a ser impulsionado pelo boom do consumo interno, mas não é sustentável a longo prazo. 1. O que é que se discute mais intensamente no Brasil, para além da pré-campanha presidencial, aliás com pouco interesse? A polémica visita de Lula ao Irão? Com certeza. Mas a crise europeia compete nas análises e nos noticiários e quase sai vencedora.
O debate público brasileiro vive também ao ritmo do "susto atrás de susto" que a Europa resolveu pregar ao mundo. O Brasil teme que a crise na zona euro arraste a economia mundial para uma nova crise global e que isso venha a afectar a fortíssima retoma brasileira. A Europa, no seu conjunto, ainda é um dos maiores, se não o maior investidor externo do país, embora a China tenha passado a quinto maior. O comércio com a Ásia cresce a ritmo acelerado, mas não chega para compensar as eventuais perdas nos mercados europeus. Como se diz aqui, "são os europeus (e os americanos) que tomam um sumo de laranja ao pequeno-almoço, não os asiáticos". E claro que o Brasil é o maior produtor mundial de sumo de laranja, como de soja ou café ou açúcar ou etanol. Em 2009, foi um dos países mais afectados pela diminuição da actividade económica europeia. Para crescer precisa de investimento estrangeiro para o sector produtivo e a crise europeia já está a difi cultar a obtenção de financiamento. Os economistas lembram que o investimento no sector produtivo é fundamental para que o país possa continuar a crescer sem inflação. Hoje, o crescimento está a ser impulsionado pelo boom do consumo interno o que protege o país dos desaires alheios mas não é sustentável a longo prazo.
2. É, aliás, curioso observar a forma como o Brasil encara esta crise europeia. Quando a Europa ainda estava em fase de negação, pensando que apenas se tratava de conceder um empréstimo de 45 mil milhões de euros à Grécia, as manchetes da imprensa brasileira traduziam o sentimento de força de um país que deixou de ser eterno devedor do FMI para passar a ser credor e que detém hoje 245 mil milhões de dólares em reservas de divisas. "Brasil ajudará a Grécia com 286 milhões de dólares" escreviam as manchetes de quase toda a imprensa nacional no dia 8 de Maio.
"Colocaremos o que for necessário para ajudar a Grécia", anunciava o ministro da Fazenda, Guido Mantega, enquanto o Presidente Lula não se cansava de criticar a Alemanha e a lentidão com que a Europa estava a reagir à crise.
Mas este número quase desaparecia, envergonhado pelo outro que figurava nas manchetes dois dias depois. "Europa cria fundo de um 'trilhão' de dólares" para pôr cobro aos ataques especulativos contra a moeda europeia e as suas economias mais frágeis. Analistas e jornalistas prolongavam a palavra "trilhão" como se ela trouxesse um "Oh" de espanto no fim. Depois ver-se-ia como esse megafundo se revelaria insuficiente para acabar com as más notícias. Agora, é a perspectiva de uma recessão prolongada que anima o debate e desanima os mercados financeiros.
O que vai acontecer à Europa? Resistirá à crise? O esforço para salvar o euro vai condená-la a vinte anos de estagnação económica? Com que consequências? Há uma certa nostalgia entre os comentadores e os académicos, que falam na perda de um modelo de civilização que na maioria dos casos admiram, na voragem de um mundo que é cada vez menos compatível com um modelo social que ainda faz a inveja de muita gente. Apenas nostalgia. Uma boa lembrança.
Rapidamente apagada pela extraordinária vitalidade de um país que prevê um crescimento "chinês" de 7 por cento para este ano; que só no mês de Abril criou 309 mil empregos formais; cujo governo se debate com a necessidade de arrefecer a economia (acaba de anunciar um corte de dez mil milhões de reais nas despesas do Estado para conseguir rapidamente esse efeito, sem ter necessidade de voltar a subir as taxas de juro, já de si muito altas). As revistas contam as histórias de sucesso empresarial que vão criando novos milionários ao ritmo de seis por hora.
Aqui os títulos são feitos de boas notícias.
3. Não vale a pena, no entanto, esconder o outro lado desta realidade. Os jornais também falam dos "gargalos" que prejudicam o desenvolvimento e que se podem transformar em travões se não se lhes prestar a devida atenção. A falta de mão-de-obra qualificada é um deles: faltam engenheiros, informáticos, operários especializados (por exemplo, para a construção civil). O outro lado desta realidade pujante é que apenas 25 por cento da população adulta brasileira domina a escrita e a matemática a um nível exigido por uma sociedade em modernização acelerada. Faltam infra-estruturas, de transportes e de telecomunicações. Os serviços do Estado são burocráticos e inefi cientes e a corrupção continua a ser um cancro. Mas talvez o pior de tudo seja a desigualdade social, que continua a ser uma das maiores do mundo, apesar de todos os esforços de Lula para reduzir a pobreza.
Três semanas no Leblon, um bairro de gente que vive muito bem, ensinam muita coisa. Os preços no supermercado (de boa qualidade) rivalizam com os do Corte Inglés mas o custo baixo da mãode-obra está presente na profusão de empregados que estão lá apenas para pôr as compras nos sacos ou para empurrarem os carrinhos até ao carro. Limpeza a seco é um luxo.
Um brinquedo, provavelmente fabricado no Brasil mas de marca europeia, custa uma fortuna. Uma simples consulta no pediatra são 400 reais, impensável na Europa. Os preços da Time ou da Economist absolutamente proibitivos. Há, pois, alguma coisa que não bate certo. E que só pode ser a ausência da vasta classe média que sustenta as sociedades desenvolvidas e na qual assenta a sua prosperidade. "Por que tudo é tão caro no Brasil?", perguntava-se a última edição da revista Época. A revista comparava os preços de um conjunto de coisas normais (de roupa de marca à aspirina, passando pelo carro, o electrodoméstico, o computador ou o telemóvel) em 13 países, incluindo três europeus (França, Reino Unido e Alemanha). Apenas a Coca-cola e o tabaco ficavam abaixo da média. Quase todos os outros produtos se situavam entre os mais caros, se não mesmos os mais caros. A Zara é uma marca para a classe média alta com preços equivalentes.
Os impostos justificam a disparidade. Mas não chegam, no entanto, para sustentar um serviço de saúde universal com o mínimo de qualidade. Há dois Brasis o minoritário, de uma classe alimentada pelo Estado, das profissões liberais e no comando de uma economia poderosa, que pode pagar o que for preciso; e o maioritário, que ainda vive com enormes dificuldades de acesso aos bens normais de consumo e de conforto das sociedades desenvolvidas.
Seria isto que a campanha deveria estar a discutir. Não é. Pelo menos, por enquanto. Talvez porque o dinamismo é tal, o optimismo é tal, que ninguém se atreva a quebrar o encantamento.



