Lula, o "quebra corações"?
31.08.2010 - 03:40 Por Teresa de Sousa
O mundo pode não aplaudir mas reconhece que alguma coisa pode ter mudado definitivamente na governação mundial. 1. No primeiro dia, a pergunta foi: o Presidente consegue um feito diplomático em Teerão e o mundo não aplaude? No segundo, foi mais uma afirmação: o mundo pode não aplaudir mas reconhece que alguma coisa pode ter mudado definitivamente à mesa da governação mundial.
O facto não quer dizer que a vitória diplomática de Luiz Inácio Lula da Silva (e de Recep Erdogan) em Teerão tenha merecido um coro de ovações. Toda a gente reconhece que o Presidente Lula obteve o êxito diplomático com que queria, porventura, marcar o legado da sua política externa: fazer do Brasil um actor de primeira linha da cena mundial, capaz de se colocar como mediador num dos mais intrincados problemas da segurança mundial. Toda a gente reconhece, também, que este acordo só foi possível graças ao enorme prestígio internacional do Presidente. Mas as primeiras reacções foram de prudência. Um verdadeiro feito diplomático? O Globo escrevia na segunda-feira que talvez sim, mas que bastante ajudado pela ameaça de sanções posta de pé no Conselho de Segurança pela diplomacia ocidental.
Ou, pelo contrário, um fogacho que rapidamente será apagado pela má-fé habitual do regime de Teerão ou pela pouca disposição de Washington e das capitais europeias em aceitarem uma saída demasiado fácil para o nuclear iraniano? Se antes do acordo havia um intenso debate sobre a iniciativa presidencial e sobre o seu signifi cado na política externa brasileira, depois do acordo esse debate não esmoreceu. As interrogações de fundo são as mesmas. É esta a melhor maneira de o Brasil se afirmar na cena internacional com a nova ambição a que tem pleno direito? Não estará Lula a alienar o gigantesco capital de confiança que conquistou em Washington a troco de uma prioridade discutível da política externa brasileira? Que vantagens pode retirar o Brasil de se ter colocado num papel de liderança de um dos mais complexos problemas internacionais? As prioridades da política externa brasileira estão no Médio Oriente? Ou, pelo contrário, na América Latina e no comércio internacional? É este o melhor caminho para chegar a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU? Muitos analistas chamam também a atenção para o facto de o Brasil assumir a partir de agora uma enorme responsabilidade internacional, que é normalmente aquilo que vem com o poder, para fazer cumprir o acordo que assinou em Teerão.
Lula pode estar "acima do bem e do mal", como dizia recentemente o candidato presidencial da oposição José Serra. Não está acima da crítica, mesmo que seja uma crítica relativamente moderada.
2.Ontem, a grande imprensa destacava o facto de esta vitória diplomática do Brasil vir "na contramão" da estratégia americana e de pode ter como principal efeito fazer descarrilar o trabalho sistemático da diplomacia ocidental para reunir um consenso sobre as sanções no Conselho de Segurança da ONU. Com que consequências? A entourage de Lula tem tido o cuidado de delimitar o sucesso obtido em Teerão. Marco Aurélio Garcia, o principal assessor diplomático do Presidente, já veio esclarecer que o acordo não resolve tudo no complexo problema do nuclear iraniano. É apenas a prova de que pode haver um caminho alternativo ao isolamento e às sanções. O chefe da diplomacia brasileira tem insistido em que se manteve em permanente contacto com Washington e com as capitais europeias enquanto negociava (secretamente, desde Novembro) com as autoridades de Teerão. Mas há no discurso do Presidente Lula e, sobretudo, do seu ministro dos Negócios Estrangeiros uma permanente crítica à forma como a diplomacia ocidental lida com a questão iraniana. E uma constante preocupação em estabelecer um contraponto entre a via do "tratamento respeitoso" de um país em desenvolvimento por parte de outro país em desenvolvimento de forma a "criar confiança" e a permitir o diálogo (as palavras são de Amorim) e a política de "imposição, de isolamento e de sanções" praticada por Washington.
Nesta dicotomia que sempre serviu para justificar a iniciativa de Lula, a nova política de Obama em relação ao Irão é, pura e simplesmente, apagada. Aliás, há uma aparente "indiferença" da diplomacia brasileiro sobre quem está ou não está na Casa Branca. Obama? Bush? O que importa? Pelo contrário, há um constante paralelismo entre o Iraque e o Irão: se invadiram um por causa de armas nucleares, também podem invadir o outro. Por mais que Lula esteja acima do bem e do mal, é este tom "antiamericano" e "antiocidental" que incomoda ainda boa parte das elites brasileiras (habituadas a ver o Brasil como Ocidente) e que também percorre, ainda que de forma implícita, o debate sobre a diplomacia do Presidente. Excesso de ambição é a menor das questões. Até porque toda a gente reconhece que a dimensão e a pujança económica do Brasil lhe dão hoje o direito a conquistar rapidamente o seu lugar ao sol na cena mundial. É mais do que isso.
É saber onde Lula quer colocar o Brasil. Como o líder dos novos "não alinhados" contra o Ocidente ou como ponte com o Ocidente?
3.Finalmente, há outra questão relevante neste debate: qual é o papel dos direitos humanos na diplomacia brasileira? É sobretudo aqui que Lula sai a perder.
No domingo, na praia de Ipanema, 6 mil mãos em cartolina negra foram enterradas na areia para simbolizar os 6 milhões de judeus do Holocausto e as actuais vítimas do regime que Lula visitava naquele dia e cujo líder abraçava efusivamente. É difícil de esquecer o comentário do Presidente às manifestações de Teerão contra o "roubo" das eleições presidenciais pelo regime que pareciam a torcida da equipa de futebol perdedora, fazendo desacatos fora do campo em vez de aceitar a derrota. Toda a gente ouviu, perplexa, o Presidente brasileiro desprezar os que "resolvem suicidar-se" nas cadeias de Cuba enquanto abraçava o seu velho amigo Fidel. Toda a gente vê como a sua política de "confiança" em relação ao venezuelano Hugo Chávez não teve o menor efeito sobre a degenerescência do regime.
Percebe-se que Lula queira mostrar que este é um novo Brasil. Percebe-se que os brasileiros se deixem levar pela euforia de uma economia que cresce a ritmos chineses.
Não se percebe que uma grande democracia ignore a agenda dos direitos humanos em nome de um novo equilíbrio de poder mundial que, em última análise, pode não lhe ser favorável.
Num artigo publicado na última edição da revista Veja, o editor da Foreign Affairs Moisés Naím lembrava que os líderes mundiais, a começar por Obama, se renderam incondicionalmente ao seu carisma e à sua humanidade.
Lula alimentou-lhes todas as esperanças. "Agora está a partir-lhes o coração." Podia ter tudo. Arrisca-se a perder muito apenas por causa da sua raiva aos "homens de olhos azuis" que dominaram o mundo por demasiado tempo? Seria uma tremenda falta de visão.



