Retrato de um pensador errante
Luís Miguel Queirós (texto) e Nelson Garrido (fotos)

 

Eduardo Lourenço, que fará 84 anos no próximo dia 23, acabou de publicar mais uma recolha de ensaios: “As Saias de Elvira”. Esta entrevista podia ter começado por aí, mas não começa. Começa, pode bem dizer-se, pelo princípio, quando a criança que brincava numa pequena e pobre aldeia beirã ainda não sonhava que viria a tornar-se num dos mais importantes e reconhecidos pensadores portugueses contemporâneos.

De S. Pedro do Rio Seco a Lisboa, da Coimbra dos anos 40, que lhe deu a conhecer a geração neo-realista, às universidades francesas, onde viveu as grandes discussões ideológicas do pós-guerra e assistiu ao Maio de 68, esta conversa segue o percurso da sua errância. Não só a geográfica, mas a que define a própria natureza do seu ensaísmo. Um pensamento desabrigado, que navega entre as fronteiras de múltiplas disciplinas sem jamais buscar refúgio nas águas seguras dos saberes estabelecidos.

 

As entradas que lhe são dedicadas em obras de referência começam sempre por informar que nasceu [em 1923] numa “pequena aldeia”. Mas nunca falou muito disso. Como é que foi essa sua infância numa aldeia beirã?
Nasci nessa aldeia que se chama S. Pedro do Rio Seco. Deve ser muito antiga. O meu pai encontrou lá uma vez, nuns campos, uma moeda romana do tempo de Vespasiano. A povoação já vem mencionada em documentos anteriores à nacionalidade e havia ali um convento muito importante, de Nossa Senhora de Aguiar, que era um foco cultural do reino de Leão, a que toda aquela zona, do lado de lá do Côa, pertenceu até ao tempo de D. Dinis. E essa permanência do leonês deixou marcas. Na minha infância usava vocábulos que depois verifiquei que as pessoas não entendiam: eram vocábulos espanhóis, ou leoneses. Por exemplo, a palavra “enchido”. O enchido é o fumeiro, mas naquela região designa o campo comunal, onde os animais pastavam no inverno e, no verão, se jogava à malha ou, ocasionalmente, futebol. Em S. Pedro do Rio Seco havia dois: o “enchido grande” e o “enchido pequeno”.
 
Vivi ali uns dez anos, mas, curiosamente, a minha aldeia não foi o primeiro lugar de aparição a mim mesmo, como diria o Vergílio Ferreira. Foi o Porto. Vim para aqui menino e terei permanecido até aos três anos. Os meus pais estavam cá quando se deu a famosa revolta de Fevereiro de 1927. Eu já tinha partido. A minha irmã ficou; a mim, mandaram-me para a aldeia. Essa viagem de caminho-de-ferro, acompanhado por uma tia, faz parte da minha pequena peripécia biográfica. Mas as minhas primeiras imagens são do Porto. É inesquecível a imagem do mar. Deve ter sido em Matosinhos: um barco com cores fortes, azul e vermelho, de borco em cima da areia. E também as chaminés das fábricas. Uma imagem que me marcou muito, de um certo terror, foi uma imagem de vermelho – penso que seria um camião que distribuía carnes. É muito curioso que eu saiba que as minhas primeiras imagens são daqui e nunca tenha cultivado qualquer mitologia pessoal nas minhas ligações com o Porto.
  

O seu pai era capitão...
Nesse tempo de que estou a falar, era sargento. Frequentou aqui no Porto a escola Raul Dória, que parece que já não existe. Eram estudos de tipo comercial, aprendia-se inglês, francês. Mas a qualidade do ensino nessas escolas – estamos ainda na República – era muito boa. O meu pai ficou habilitado a poder ler francês e um pouco de inglês, o que não era banal para um rapaz da extracção dele, e com a profissão que exerceu.
Eu fiquei em S. Pedro e foi lá que fiz a 4ª classe, embora tenha feito a 3ª na Guarda. Os primeiros dez anos da minha vida foram passados nessa aldeia, muito pobre, muito representativa do nosso atraso, no sentido civilizacional do termo. Não havia água nem electricidade. A água só foi posta na primeira presidência de Mário Soares, a electricidade pouco antes. Havia uma grande diferença entre S. Pedro e qualquer aldeia do outro lado da fronteira. Íamos lá fazer compras e já nos anos trinta tinham electricidade: quase 50 anos de diferença. E aquilo era o faroeste deles.
 
Sem mitificar a infância, o que, aliás, seria justo e natural, foi um tempo despreocupado, todo entregue à brincadeira, irresponsável. E depois veio a entrada na escola, onde fui um menino aplicado.

 
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