A enciclopédia infinita
Por Fernando Magalhães

EEm “Ficções”, obra hoje publicada na Colecção Mil Folhas, Jorge Luis Borges combina o arrebatamento poético com o delírio lógico. Contos para se perder ou ganhar a razão.

“Ficções”, de Jorge Luis Borges, foi editada em 1944. Junta duas colecções de contos, “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (1941) e “Artifícios” (1944). Poderiam ser datas fictícias e Jorge Luis Borges um anagrama do nome de outro autor, real ou imaginário. O próprio Borges admitiria o logro, questionando a sua identidade. “Às vezes sou Borges.”

Pode escrever-se tudo o que se imaginar sobre o escritor argentino – a quem, provavelmente por se sentir hesitante quanto à sua verdadeira identidade, a Academia Sueca sistematicamente recusou a atribuição do prémio Nobel – que tudo estará certo ou estará algum dia. A sua bibliografia é, aliás, a mais extensa que se conhece, a seguir à de Shakespeare.

Borges foi acima de tudo um filósofo poeta, da mesma forma que Fernando Pessoa foi um poeta filósofo. Um e outro tentaram descartar-se da personalidade, da máscara. Borges afirmou: “Na realidade não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.” Pessoa, mais sintético, falou em “ser tudo, de todas as maneiras”.

Transformaram-se integralmente em literatura. Procurando ser, como o Deus da Cabala judaica, o nome sagrado que em si é e contém todo o Real. No caso de Jorge Luis Borges havia ainda labirintos e espelhos, temas que, de resto, o enfastiavam “especialmente quando são outros que os usam”. Em “Análise da obra de Herbert Quinn”, um dos contos reunidos em “Ficções”, avalia-se uma obra deste escritor fictício intitulada “The God of the Labirynth”, através do recurso a fórmulas matemáticas. Existem espelhos disseminados nas salas hexagonais de “A Biblioteca de Babel”, conto central no universo borgesiano, que “fielmente duplicam as aparências”. Reflexos de reflexos. Em “Pierre Ménard, autor do 'Quixote’”, Pierre Ménard, outro escritor imaginado por Borges, escreve uma obra inteira absolutamente igual, letra a letra, ao “Quixote” de Cervantes, no entanto absolutamente diferente porque Ménard reproduziu interiormente todo o processo psicológico e literário que conduziu à sua feitura.

Como se percebe, Jorge Luis Borges soube esconder-se. Ele que, na série de entrevistas concedidas a Georges Charbonnier em 1964, difundidas pela rádio francesa e publicadas mais tarde pela Gallimard no livro “Entretiens avec Jorge Luis Borges” (“Entrevistas com Jorge Luis Borges”, na tradução portuguesa pela editora Início) falava numa “máquina de fazer versos que nos diz para não pensar, esgotando as possíveis combinações das palavras até ao momento em que tais palavras dariam algumas ideias”. Mas que, no fundo, reconhece que esse “poeta mecânico” jamais “satisfaria inteiramente, dado que não conseguiria explicar a emoção”, uma vez que a intensidade do poema se mede pelo estado de “arrebatamento interior” do autor.

O jogador
Eis-nos instalados no eixo do paradoxo de que se faz a obra de Borges. Entre a arte combinatória do jogador e do matemático e a absoluta imprevisibilidade da vida e da literatura. Sobre as “leis secretas do verso livre e da prosa” disse: “Escrevemos um verso, escrevemos depois outro verso. Temo-los mais ou menos no ouvido. Mas isso surpreende-nos, sem dúvida: entrevêem-se essas leis secretas. Sentimos que este verso livre é possível depois de um outro e que outro é impossível. Quer dizer, existe sempre um pouco de 'A Biblioteca de Babel’ lá dentro! Há também alguma coisa da tal máquina...”

Os temas da lei (ordem) e do jogo (acaso) são sistematizados, de acordo com a lógica mais implacável (e, por isso, delirante) a par da poesia mais marcada pelo onirismo, em “A Biblioteca de Babel” e “A Lotaria na Babilónia”, dois contos fulcrais contidos em “Ficções”.
Em “A Lotaria na Babilónia”, das narrativas mais marcadamente kafkianas do escritor argentino, a sociedade é governada por uma Companhia que se dedica a tornar o quotidiano dos cidadãos num imenso jogo de lotaria que progressivamente se complexifica até à insanidade, permitindo toda a espécie de teorias explicativas. “Porque a Babilónia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos”, enquanto para outros “a Companhia é omnipresente mas só tem influência sobre as coisas minúsculas: o piar de uma ave, as cambiantes da ferrugem e da poeira, os meios sonhos da madrugada”.

Já na “Biblioteca de Babel” a ordem ostenta a crueldade de Sade. “Não há nesta biblioteca dois livros idênticos. A biblioteca é total e as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o relatório verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas...” e mesmo “um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros”.

Na biblioteca de Babel não é possível combinar os caracteres “dhcmrlchtdj”, “que a divina biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um Deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos – e também a sua refutação. Um número 'n’ de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas o símbolo 'biblioteca’ admite a correcta definição de 'ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais’ mas 'biblioteca’ é 'pão’ ou 'pirâmide’ ou outra coisa qualquer, e as sete letras que a definem têm outro valor. Tu que me lês, tens a certeza de que comprendes a minha linguagem?”

Jorgeluisborges, rigsbsorulejore, sigerjgroseulo... Ao ler estas “Ficções” jogue o leitor e descubra quantos e quais são os nomes de Deus. Apenas ficções ou algo mais?