“Ressuscitava Sócrates”
Aquando da saída da sua autobiografia, Agustina Bessa-Luís respondeu, invariavelmente, que, se não fosse romancista, gostaria de fazer ou negócios ou milagres. Entre os dois dons, a romancista optava, com parcimónia, pelo segundo. “Fanny Owen” está longe de ser um milagre. Da escrita, obviamente. Mas, desde que começou a construir o seu mundo romanesco, vários milagres surgiram...

PÚBLICO — Por que razão gostava de fazer milagres?
AGUSTINA BESSA-LUÍS — Porque o mundo não anda sem milagres. De tempos a tempos, tem de haver uma renovação do milagre como o transformar a água em vinho.

E milagres da escrita?
Ah, sim todos os dias!

Eduardo Lourenço, em 1963, classificou a “A Sibila”, de 1953, como sendo “o milagre”. António José Saraiva vai mais longe: “Agustina é, depois de Fernando Pessoa, o segundo milagre do século XX português.” E Óscar Lopes fala mesmo de uma revelação...
... isso é mais da ordem do impossível. O milagre é outra coisa. Um companheiro de letras dizia num colóquio, um dia destes, que todos temos de morrer. Eu contrapus: “Não, isso não está provado. Pode haver alguém que não morra.” Ora, isso é da ordem do milagre, como o cineasta Dreyer em “A Palavra” apresenta o milagre — como a ressurreição da morta. Esses milagres é que eu gostava de fazer!

E quem é ressuscitaria?
Ressuscitava Sócrates e já me dava por satisfeita quanto aos meus poderes! (risos)

José Augusto, no início de “Fanny Owen”, diz: “A paixão é uma dessas coisas assustadoras. Não a paixão pela glória, ou por uma mulher. É talvez a consequência da falta de eternidade. Sinto despeito por não ser um deus.”
É o caminho. Eu já não me lembrava disso... Mas agora que estou a escrever o último volume da trilogia de “O Princípio da Incerteza” — “Os Espaços em Branco” — estou a reencontrar esse caminho. E vou mais longe e chamo a atenção para um livro que é fundamental para a literatura de todos os tempos: “O Coração das Trevas”, do Joseph Conrad. É um livro perfeitamente enigmático, voluntariamente misterioso. Ele sabia muito mais do que conta...

O coração da trevas é o coração de Deus?
Não sei... Se de Deus se do Demónio. Ou do bem ou do mal. Onde está a fronteira... não sei. De resto, abro o livro com uma epígrafe de “O Coração das Trevas”.