In
PÚBLICO de 25 de Outubro de 1997
"O
presente é uma linha ténue"
Por Carlos
Câmara Leme
"Todos os Nomes", o último
livro de José Saramago, é um ensaio sobre
a existência, com contornos policiais. Um ensaio pessimista.
"Nada no mundo tem sentido", diz a personagem
central do romance. A única que tem nome: José.
O novo romance de José Saramago
mistura muitas coisas: uma história, um ensaio - de
foro filosófico - e algo de novo na sua obra. Saramago
está cada vez mais descrente do futuro da humanidade,
e do homem. Ou seja, mais pessimista. Os lugares centrais
do livro passam por uma Conservatória Geral e por um
cemitério, onde todos nós, mortos e vivos, se
confundem. Resta-nos viver o presente... É pouco. Se
calhar é a única coisa que nos resta. A obra
é lançada pela Caminho nos próximos dias
e será apresentada a 3 de Novembro, em Lisboa, por
Eduardo Lourenço. O PÚBLICO já leu o
livro e entrevistou o autor de "O Ano da Morte de Ricardo
Reis".
O que é "Todos os Nomes"?
Um romance com muitos traços de um policial? Mais um
ensaio sobre a existência? Sobre a procura da identidade?
Para haver romance policial são precisos, pelo menos,
um criminoso e um polícia. Nada disso existe em "Todos
os Nomes". Mas é verdade que o livro descreve
uma procura, uma busca, que há nele uma investigação.
A grande e decisiva diferença está no facto
de que a pessoa procurada não sabe que a procuram e
a pessoa que procura não tem a certeza de querer encontrar
o objecto da sua busca. Que este romance possa ser entendido
como um ensaio sobre a existência - talvez. Julgo que
todos os livros o são, que escrevemos para saber o
que significa "viver", e não já para
tentar encontrar resposta às famosas perguntas: quem
somos? Donde vimos? Para onde vamos?
Que o livro possa ser visto como uma indagação
sobre a identidade, sim, mas não sobre a identidade
própria. O que aqui se procura é o "outro".
O Sr. José - a personagem central
do livro - é uma daquelas pessoas que levam a vida
a coleccionar coisas, diz-se no início do livro - "talvez
por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor
único do universo". O Sr. José não
se identifica desta maneira com o romancista José Saramago
enquanto criador de mundos aos quais procura imprimir um sentido?
Não sou o Sr. José, embora lhe tenha dado o
meu nome. E não me reconheço em nenhum dos seus
comportamentos e características. Não temos
o mesmo "modo de ser". Salvo essa ideia de que talvez
seja possível pôr alguma ordem no que a não
tem, ou, por outras palavras, resignar-se ao caos desde que
seja possível traçar nele ao menos uma linha
que una dois pontos. O que faço como romancista é
tentar atar uns quantos fios soltos, deixar atrás de
mim um pouco de sentido. Mesmo que não seja mais que
o tão caluniado sentido comum...
"Não há nada que
mais canse uma pessoa", diz o narrador, "que ter
que lutar com o próprio espírito, com uma abstracção."
Esse também é o trabalho do escritor? Como é
que surgiu esta ideia de baralhar a vida dos mortos com a
vida dos vivos? É a procura da natureza da fronteira
que separa a vida da morte? Afinal, como se discute no último
capítulo do livro, o que é mais sagrado: a vida
ou a morte?
Todo o romance precisa de uma "história",
mas um romance que não se tenha proposto mais que contar
"essa história" interessa-me pouco. A explicação
disto, provavelmente, encontra-se numa declaração
que algumas vezes tenho feito, a de ser em ensaísta
falhado que escreve romances porque não teve quem lhe
ensinasse a escrever ensaios... Precisei sempre, para trabalhar,
de uma ideia forte, ou de uma abstracção, se
se quiser chamar-lhe assim. Mas as ideias, sejam elas fortes
ou fracas, só da realidade é que podem nascer,
os dados da imaginação são também
dados de realidade. "Todos os Nomes" não
existiria se eu não tivesse tido que procurar, investigar,
como fui relatando ao longo dos "Cadernos de Lanzarote
- IV", as circunstâncias do falecimento do meu
irmão Francisco, em 1924. Nada dessa busca passou para
o romance, mas o livro alimenta-se da minha própria
vivência de Sr. José durante os meses que levei
a procurar um garotinho que morreu com quatro anos no hospital
de Lisboa.
Quanto ao que é mais sagrado, se a morte, se a vida,
respondo que a vida. Mas nem toda a gente estará de
acordo: a prova é que dar um pontapé a um vivo
não suscitará qualquer advertência sobre
o sagrado da vida, ao passo que tê-lo dado a um morto
provocaria logo o protesto: "Tenha vergonha! A morte
é sagrada!..."
Essa questão coloca-nos, de
novo, perante a questão da identidade. Todos os nomes
podem ser um só? O do Sr. José, perseguindo
o destino de uma mulher e o seu próprio, não
se confunde connosco? Com todos os josés do mundo?
Remeto para o "Ensaio sobre a Cegueira". Em certa
altura a rapariga dos óculos escuros diz: "Há
dentro de nós uma coisa que não tem nome, essa
coisa é o que somos." Comentando esta frase, escrevi
há tempo: "Talvez o desejo mais profundo do ser
humano seja poder dar-se a si mesmo o nome que lhe falta."
Portanto todos somos uma espécie de senhores josés
a quem anda a faltar o resto do nome.
Na epígrafe do livro lê-se:
"Conheces o nome que te deram, não conheces o
nome que tens." Quem diz o nome não pode dizer
a vida? "Em rigor", diz de novo o narrador, "não
tomamos decisões, são as decisões que
nos tomam a nós." O acaso tem uma força
imensa...
Torno à rapariga dos óculos escuros. A frase
dita por ela e a epígrafe deste romance são
complementares, encaixam perfeitamente uma na outra. Isto
mostra, ao menos, que há alguma coerência nas
ideias do autor... Quanto à "vida", não
me parece que possa ocupar aqui o lugar do "nome".
Quem sou eu? Um "ser humano" a quem deram o nome
de "José Saramago". E isso que significa?
Que significa ser-se "ser humano"? Que significa
ser-se "José Saramago"? São apenas
nomes que "me deram", não são o nome
"que tenho". Também damos o nome de "acaso"
a algo que nos dicionários se define assim: "Efeito
resultante de um grande número de pequenas causas,
independentes entre si, e funções de leis ignoradas
ou mal conhecidas." Por outras palavras: o acaso não
existe...
O ser no tempo
Reunir, como faz o chefe da conservatória,
os papéis da vida e da morte não é demasiado
borgiano? Não será esse o tema central do romance
e a essência da busca do Sr. José?
Nunca nada será demasiado borgiano. Creio que os três
escritores que melhor definem este século são
Kafka, Pessoa e Borges, o que quer dizer que também
nunca nada será "demasiado" pessoano ou kafkiano...
O tema central do romance, como disse antes, é a procura
do "outro", independentemente de estar vivo ou morto.
Por isso o Sr. José continuará a "procurar"
a mulher desconhecida, mesmo depois de saber que já
não a poderá encontrar. Juntar os papéis
dos vivos e dos mortos significa juntar toda a humanidade.
Nada mais. Ou tudo isso.
À imagem do que acontece na
esmagadora maioria dos seus livros, o problema do tempo, dos
tempos, está também presente em "Todos
os Nomes". Porquê essa obsessão?
Porque todas as outras obsessões não passam
de meros afluentes desse mar.
Qual é o principal objecto
da sua ficção: o tempo ou o ser? "O mais
importante", lê-se, "era precisamente isso,
o que o tempo faz mudar, e não o nome, que nunca varia"...
Não o ser por si só, não o tempo por
si só, mas o ser no tempo. Parece uma frase de filósofo,
peço perdão pelo atrevimento... Mas às
vezes penso que o direito à filosofia deveria ser incluído
entre os direitos humanos...
Ao contrário do que acontece
com outras personagens femininas que criou - as mulheres fantásticas
de "Memorial do Convento", de "Jangada de Pedra"
ou de "Ensaio sobre a Cegueira" -, em "Todos
os Nomes" não parece ser reconhecida à
mulher e ao amor uma força tão excepcional.
Porquê? Mas ainda há aqui, veladamente, uma história
de amor?
É uma história de amor, ou melhor, uma história
que poderia vir a ser de amor. A ansiedade do Sr. José
é já uma ansiedade amorosa, embora ele não
saiba ao princípio. Quanto à força, a
tal força feminina que de facto está patente
em outros romances, creio que ela também se encontra
em "Todos os Nomes", na senhora do rés-do-chão
direito. A diferença é que, desta vez, não
se trata duma mulher nova, mas duma mulher de 70 anos. As
outras mulheres são, de certo modo, "sobre-humanas",
esta é "humana" simplesmente. A força,
porém, está lá...
Um dos aspectos mais interessantes
da obra é a existência de várias vozes
que aqui e ali vão aparecendo. Uma delas chega a ser
o tecto que dá conselhos ao Sr. José (como noutras
obras eram os misteriosos cães que iam dando uns palpites).
Qual é a importância dessas vozes? Até
que ponto a sua introdução não é
sinal de uma alteração na sua técnica
narrativa?
Isso a que chama "vozes" já vem de "Levantado
do Chão". São como projecções
da consciência, ecos de um dizer ou de um pensar que
se tornaram dialécticos ao expressar-se, neste caso
ainda mais justificados pelo facto de o Sr. José ser
um homem só. "Falar com as paredes" é
uma expressão coloquial corrente, portanto o Sr. José
não inventou nada quando fez do tecto da sua casa um
interlocutor.
Além da conservatória,
há um outro espaço fundamental e similar, em
"Todos os Nomes": o do Cemitério Geral; espaços
onde a vida e a morte se confundem. Porquê essa similitude?
O narrador diz que o Cemitério Geral é "um
catálogo perfeito, um mostruário (...) um inventário
de todos os modos de ver, estar e habitar existentes até
hoje", "o próprio coração do
tempo". Porquê?
Uma conservatória única e um cemitério
único, como são os deste romance, contêm
logicamente, por essa mesma unicidade, todos os nomes. Quando
cito aquela frase de Croce que diz que "toda a História
é História contemporânea", quero
dizer, à minha maneira, que tudo o que sucedeu está
a suceder, que todos os mortos estão vivos, que não
somos nada sem eles. O presente é uma linha ténue
que se desloca ininterruptamente para o que chamamos futuro,
ou talvez um "eixo" móvel sobre o qual o
tempo vai rolando, segundo a segundo. Ou página a página.
Se, como escreve, "contra a morte
não se pode fazer nada", por que é que
"um Cemitério é como uma espécie
de biblioteca onde o lugar dos livros se encontrasse ocupado
por pessoas enterradas"?
É certo que, objectivamente, nada podemos contra a
morte. Mas a memória, a memória "sobrevivente",
faz pairar, sobre a morte, a vida. Muitas vezes se chamou
a uma biblioteca não consultada cemitério de
livros. É a primeira vez, suponho, que alguém
teve a ideia de chamar a um cemitério biblioteca de
pessoas. Tudo está em consultar ou não a biblioteca,
qualquer que ela seja. A memória, quero dizer.
Por que razão o Sr. José
escolhe "a verdade pela mentira", quando troca a
tabuleta da mulher desconhecida por uma outra? Na vida, como
na morte, tudo é relativo? Não há fio
de Ariadne que nos norteie?
Quando o Sr. José troca a tabuleta, ela já
tinha sido trocada antes. Talvez a nova troca tenha recolocado
a tabuleta no seu lugar, talvez não. De todo o modo
ele não o saberá. O importante não é
perguntar "Onde estás?", mas sim "Quem
foste?".
"Todos os Nomes" é
uma busca ontológica? Ou é uma subversão
das fronteiras entre verdade e mentira, vida e morte? Nada
no mundo tem sentido, como murmura, no final do livro, o Sr.
José?
Busca ontológica, sim. Mas sem mais pretensão
que chegar aonde alcançasse, nesses domínios,
o meu curto braço. Quanto ao sentido que a vida tenha,
já não seria pouco que conseguíssemos
ser, cada um de nós, o nosso próprio fio de
Ariadne...
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