In
PÚBLICO de 10 de Maio de 1992
José Saramago critica responsáveis
da Cultura
"É a terceira vez
que sou censurado por Sousa Lara"
Por
Torcato Sepúlveda
Em entrevista ao PÚBLICO, o
romancista José Saramago não poupa o Governo
português. O responsável é ele e não
o regulamento do prémio. "A CE não podia
esperar que isto acontecesse". E defende a Frente Nacional
para a Defesa da Cultura.
Como se sente na pele de um escritor
censurado, dezoito anos depois da Revolução
de Abril? Por que antes do 25 de Abril, era normal para si
ser censurado...
Sim era normal. Não tanto como escritor - porque os
livros que publiquei antes do 25 de Abril nunca foram objecto
de censura - mas como jornalista. Em 1972 e 1973 trabalhei
no "Diário de Lisboa" com funções
de editorialista e todos os dias se guerreava com a censura.
Não esperava que, depois do 25 de Abril, se repetissem
comportamentos desses, nessa altura institucionalizados. Embora
a exclusão do meu romance "Evangelho Segundo Jesus
Cristo" tenha também um carácter institucional,
porque não foi uma medida extemporânea. É
uma decisão tomada por uma instância do Governo
e foi no exercício de uma autoridade governamental
que a decisão foi tomada. Quanto ao meu estado de espírito:
estou triste e indignado. Sinto-me também estupefacto:
nos primeiros dias após a decisão governamental,
perguntava-me se isto estava de facto a acontecer.
Mas Governo, secretário de Estado da Cultura e subsecretário
de Estado da Cultura tiveram a resposta que mereciam: repúdio.
O que não diminui a indignação, contaminada
por um sentimento de tristeza profunda. Mais: tendo acontecido,
como é possível que primeiro-ministro, secretário
de Estado e partido do Governo procurem ladear isto, tentando
encontrar uma solução para o que não
tem solução. O facto é brutal e não
pode ser diminuído, sejam quais forem os artifícios
de retórica ou de baixa dialéctica política,
ou de cabotinismo.
Considera este caso apenas português?
Não se tratará de um precedente que amanhã
pode permitir a um governo qualquer da CE tomar uma medida
semelhante? Este caso não se tornou já europeu?
As Comunidades não esperavam que isto acontecesse
no interior delas. Estou certo que na comunidade europeia,
no seu conjunto ou nas instâncias onde o regulamento
foi inventado e o prémio foi criado, não passou
pela cabeça de ninguém que isto pudesse acontecer,
e por isso não elaboraram normas preventivas.
Eu não estou tão contra o facto de os governos
apresentarem os seus candidatos, desde que funcionem como
simples caixa de correio. Instituições responsáveis
e competentes, designadas para fazer uma escolha, apresentam
aos governos, por uma questão de mero funcionamento
administrativo, os candidatos. E os governos deveriam limitar-se
- e nos anos anteriores assim sucedeu - a pôr o carimbo:
"Siga". Eu próprio já fui candidato
a este prémio, e o Governo de então era chefiado
por este primeiro-ministro. Quem dirigia na Secretaria de
Estado da Cultura teve o bom senso de não intervir.
O absurdo deste caso é que houve também a intervenção
do chamado factor pessoal. Há pessoas no PSD que não
cometeriam a asneira do senhor Sousa Lara. Poderiam pensar
que era um horror que o meu livro representasse Portugal,
mas não se atreveriam a intervir, por mero respeito
democrático. Este senhor não. Demais, com o
seu ar tão elegante, bem educado... Se o físico
das pessoas diz alguma coisa, o rosto de Sousa Lara, o seu
modo tão suave parecem incompatíveis com tal
atitude. Lembro-me, porém, que nas galerias de pintura,
quer aqui, quer em Espanha, os retratos de inquisidores apresentam
semelhanças, uma espécie de ar de família,
entre o senhor Sousa Lara e os seus antepassados do Santo
Ofício.
Insisto. Não terão sido
as Comunidades Europeias demasiado optimistas em relação
a si próprias?
Foram, claro que foram...
...amanhã, um governo chefiado
pelo senhor Le Pen pode fazer o mesmo com Thar ben Jelloun,
porque é de origem árabe. As Comunidades devem
saber que os monstros vivem nelas.
Sim, sim. Mas mais do que a CE somos nós que temos
de saber que os monstros vivem dentro de nós. E vivem
aqui, vivem em Espanha, vivem na Alemanha, vivem em toda a
parte. E estão a levantar a cabeça. E se é
certo que a CE pode, perante casos como este e outros de natureza
diversa, tomar medidas, também é certo que as
medidas devem ser tomadas no interior de cada país,
de cada sociedade, nas relações internas de
toda a ordem e nas relações com os outros. Não
devemos esperar que a a CE decida comportamentos, regras,
métodos para evitar que coisas destas aconteçam,
mas criar aqui os anticorpos contra o mal. Quando o senhor
Sousa Lara diz no Parlamento que este caso não deveria
ter sido tornado público, defende o triunfo da hipocrisia.
Estes casos estão a tornar-se
frequentes. O embaixador de Marrocos achou que o filme de
João César Monteiro, "Recordações
da Casa Amarela", poderia chocar a mentalidade muçulmana.
Já não é um ministro ou um secretário
de Estado a emitir julgamentos restritivos sobre uma obra
de arte. É um simples funcionário... Dentro
de cada um de nós habitará um Intendente Pina
Manique?
Bom, essas pulsões são inseparáveis da
natureza humana. Mas não foi por acaso que a sabedoria
popular criou este dito: "Se queres conhecer o vilão,
mete-lhe a vara na mão". O grande mal que pode
acontecer às democracias - e penso que todas elas sofrem
em maior ou menor grau dessa doença - é viverem
da aparência. Isto é, desde que que funcionem
os partidos, a liberdade de expressão, no seu sentido
mais directo e imediato, o Governo, os tribunais, a chefia
do Estado, desde que tudo isto pareça funcionar harmonicamente,
e haja eleições e toda a gente vote, as pessoas
preocupam-se pouco com procedimentos gravemente antidemocráticos.
Na relação do senhor Sousa Lara comigo, este
não é o primeiro episódio. Já
este ano, o que me leva a crer que tudo isto tem origem no
"Evangelho Segundo Jesus Cristo". Foi enviado, penso
que em Fevereiro, um pedido de subsídio para que eu
me deslocasse a Paris, à Expolangues, e o senhor subsecretário
de Estado, não fez censura porque não tomou
decisão alguma: exerceu o veto de gaveta. Mais grave
porém: recentemente, em Abril, a Universidade francesa
de Clermont-Ferrand convidou-me para lá ir. E mais
uma vez foi feito, através do Instituto Português
do Livro e da Leitura [IPLL], o pedido de apoio para a viagem.
O IPLL limitou-se a passar o pedido a quem tem o poder de
decidir, mais uma vez ao senhor Sousa Lara. Que respondeu
que não haveria subsídio para mim e que ele
sugeria outro escritor. Sei o nome do escritor alternativo,
que não tem nada que ver com o assunto com certeza.
Mas a Universidade de Clermont-Ferrand respondeu: "Está
muito bem, mas quem nós queremos cá é
o senhor Saramago. E eu lá fui, o Estado português
não gastou um tostão. Portanto, o veto para
o Prémio Literário Europeu é o terceiro
caso de censura que sofro este ano.
Em declarações ao "Expresso"
sugeria, com tristeza e melancolia, a hipótese de abandonar
Portugal. Saramago será mais um vencido da vida? Um
vencido do reino da estupidez?
Há uma coincidência que eu não busquei.
Acontece que dentro de alguns meses, mas isto estava já
decidido antes, vou viver alternadamente aqui e fora de Portugal.
Por razões que não tenho que explicar, mas que
se prendem com desejo de tranquilidade. A vida está
a tornar-se-me cada vez mais difícil e tenho que encontrar
calma para fazer o que tenho ainda a fazer, porque não
cheguei ao fim com o "Evangelho Segundo Jesus Cristo".
Nessa conversa com Clara Ferreira Alves, do "Expresso",
dadas as circunstâncias em que ocorreu, era inevitável
que eu exprimisse indignação, protesto, dizendo:
"Qualquer dia vou embora". Mas as alterações
na minha vida estavam previstas. Não abandonarei a
minha terra, a não ser que este ou outro Governo cometesse
a asneira de me transformar em ovelha negra, coisa para a
qual não vejo grandes razões.
Até certa altura, os intelectuais
exerciam uma espécie de poder moral sobre a sociedade.
Mas com a crise do comunismo, os "clercs" - talvez
com medo de serem acusados de comunismo - refugiaram-se na
luta puramente cultural. Ramalho Ortigão até
sobre a poda das árvores falou em "As Farpas".
Aqui parece residir o grande defeito da Frente Nacional para
a Defesa da Cultura. Falaram do IVA nos livros mas não
se importaram com o IVA no pão e no leite. E metade
da população portuguesa não vive tão
bem como isso... Parece que os intelectuais se têm afastado
afectivamente do resto da população.
Os escritores, as pessoas a quem chamamos intelectuais, eram
gente de ideias gerais. E sobretudo havia uma diferença,
que para mim é radical, profundíssima, quanto
à situação da comunicação
social no tempo e à comunicação social
hoje. Os escritores de então, um Fialho, com "Os
Gatos", para falarmos apenas dos nossos, um Ramalho e
um Eça, com "As Farpas", toda essa gente
que intervinha socialmente pela pena, supria as deficiências
da comunicação. No caso concreto, da imprensa.
Hoje, a situação está invertida. O que
levava os escritores no século passado a fazerem jornalismo
e nas suas próprias obras literárias a fazerem
qualquer coisa que tinha que ver com o jornalismo no sentido
da informação, da edificação do
leitor, da construção da sua mentalidade, do
seu sentido crítico, tudo isso passou, ou tudo isso
deveria ter passado, para a comunicação social
de massa. O escritor achou-se fora desse processo. É
a própria evolução tecnológica,
o desenvolvimento das comunicações de massa
que exclui o escritor dessa tarefa. Não significa que
um ou outro não o faça, mas não é
dele que a população de um país espera
isso. Procura-o na imprensa, na rádio e na televisão.
E nós sabemos como o faz. A televisão, por exemplo,
asfixia-nos com imagens, imagens não tratadas, que
nos submergem, mas no fim de um telejornal, informação,
nenhuma.
É preciso não tomar a reacção
ao IVA, e tudo o que levou à criação
da Frente Nacional para a Defesa da Cultura como defesa de
interesses corporativos, pânico de gente que vai vender
menos livros. Uma visão mesquinha. O que se deveria
ter visto neste movimento, a que se chamou Frente, o que parece
ter chocado muita gente, e Nacional, o que parece ter chocado
ainda mais - a comparação era fácil,
em França há o Front National; jogar assim com
as palavras é lamentável - é o mal estar
que o IVA despoletou. Porque não surgiram apenas ataques
à Frente, descobriu-se uma preocupação,
que já não pode ser mantida em silêncio,
sobre o estado da cultura em Portugal. A Frente aparece por
causa disso, mas não é isso que lhe dá
o sentido verdadeiro. Como também não é
a famosa reestruturação dos serviços
da Secretaria de Estado da Cultura (SEC). Sobre a qual reestruturação
não sei se é boa se é má. Tirando
a questão da Biblioteca Nacional e a do IPLL, o resto,
a redução das direcções gerias,
não sei se é bom se é mau. Não
estudei o assunto. E há que dizer que não me
interessa muito. Pode até provar-se amanhã que,
de um ponto de vista meramente estrutural, se está
perante uma boa solução ou uma solução
aceitável.
A questão é saber se a política cultural
do Governo está orientada no sentido de corrigir os
profundos males, que não são apenas de estrutura
de serviços. São males enraizados na nossa educação
e na nossa mentalidade. Não se pede que o Estado seja
o médico que vai tratar de tudo, mas pede-se que o
Estado cumpra a sua obrigação. Porque o resto
não é com ele, é com os cidadãos
todos e, neste caso, com os chamados intelectuais.
O que não faz sentido é que se diga que a frente
não apresentou soluções. Peço
um minuto de reflexão: reúnem-se mais de setenta
associações de diversa índole - que vão
das desportivas, às ecológicas, às culturais
em geral, às profissionais - que até então
não tinham estabelecido qualquer contacto umas com
as outras (e não estabeleceram ainda, porque a Frente
não está estruturada para reunir em plenário
com toda esta gente para tomar decisões, não
há sede, não há secretaria, não
há fundos) e quer-se que ela apresente propostas...
É impossível que a Frente apresente propostas
e sobretudo que as apresente imediatamente, como se as já
tivesse no bolso, como se antes de ser Frente já andasse
a estudar tudo isto. E na hora de se declarar Frente dissesse:
"Aqui estão". Há a ideia - que espero
vá para diante - de fazer um exame objectivo da cultura
em Portugal. Relatores, apoiados por comissões, analisarão
dez, ou doze, ou quinze áreas culturais. Que serão
estudadas profundamente. As comunicações serão
depois debatidas durante dois ou três dias, não
sei bem, porque tudo isto está ainda verde. Este levantamento
permitirá depois a formulação de propostas.
Mas por favor dêem-nos tempo...
No fim disto, em meu entender- mas aqui há diferenças
de opinião - a Frente acaba. Porque depois serão
as setenta associações que fazem parte dela
que devem continuar o trabalho.
O que parece é que o José
Saramago, tal como alguns críticos da Frente, tem a
preocupação do real, do concreto...
Se os bibliotecários se juntaram à Frente é
por razões da sua própria actividade. Isso é
que deveria ter sido investigado, e foi isso que grande parte
da comunicação social não fez. Compreendo
os articulistas e os cronistas que se pronunciaram contra
a Frente. Mas uma coisa me deixou magoado: há pessoas
que pelo seu passado e pela sua própria responsabilidade
não têm o direito de formular a sua opinião
de qualquer maneira. Não perdoo que Joaquim Vieira,
director adjunto do "Expresso", na sua coluna "Quente
e Frio", diga coisas como "pela média etária,
a Frente parece-se muito com o bureau político do PCUS".
Não sei a que média etária se refere,
a das organizações que formam a Frente? De qualquer
maneira disse-o. E isto reflecte duas coisas: desprezo pela
velhice e anticomunismo primário.
Santana Lopes, em entrevista à
revista "Grande Reportagem", de Maio, afirma que
Saramago já o elogiou duas vezes: na Semana de Bordéus
e numa sessão da Mundial Confiança, aquando
da estreia da "Blimunda", no São Carlos.
É verdade?
É mentira. O senhor secretário de Estado utiliza
alguns factos para construir um discurso que só a ele
interessa. Estive em Bordéus e falei com ele, de facto:
para lhe dizer que ele tinha de defender em Bruxelas a nossa
identidade, se não "eles" comiam-nos. Estive
presente na sessão da Mundial Confiança, mas
não lhe disse nada. O senhor secretário de Estado
é que não apareceu na estreia de "Blimunda".
Não o vi lá. Se ele disser que esteve, convém
que apresente testemunhas.
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