O Ano da Morte
de Ricardo Reis
José Saramago



 


In PÚBLICO de 11 de Novembro de 2000
Entrevista com José Saramago

"Nem preciso de Deus"
Por Alexandra Lucas Coelho

O primeiro romance de Saramago pós-Nobel não chega a ter matéria de incómodo. Talvez no próximo, "A Viagem do Elefante", regresse à insurreição com que fala, por exemplo, de Deus.

Só por ordem médica o Nobel José Saramago desistiria de viajar. E como aos quase 78 anos (cumpridos no próximo dia 16) continua seco e saudável, entre Nova Iorque e Santiago do Chile deu um pulo a Lisboa esta semana. Os 50 mil exemplares do seu novo romance acabavam de ser impressos, a tempo de chegarem dia 15 às livrarias, e havia que acertar os pormenores do lançamento nacional e internacional - directos pela Internet, digressões por Espanha, etc.
Sendo que a ideia de "A Caverna" já vem de antes do Nobel, ao fim de três anos e de umas tantas voltas ao mundo, eis finalmente o romance - afinal escrito em apenas seis meses, os primeiros de 2000. Um recorde pessoal de quem queria mesmo acabar antes do fim do século. "A única pressão era essa, escrevi-o no mesmo estado de espírito dos anteriores. Não tinha que provar que era capaz de fazer outro livro."
De resto, o próximo, entre uma digressão e outra - "não consigo dizer que não" - já tem nome: "A Viagem do Elefante", a ser escrito logo que Saramago termine duas encomendas menos morosas: uma história policial, para o Brasil, e o prefácio de um volume da Bíblia, a sair em Itália.
Na Alegoria da Caverna segundo Saramago, uma família de oleiros representa o exterior humano e artesanal de um Centro (nunca se escreve comercial, mas o autor tem-lo dito) com muralhas altas e janelas que não se podem abrir (para evitar suicídios incómodos).
Estamos longe da intensidade (e da ideia) de um "Ensaio Sobre a Cegueira", a obra que abre, diz o autor, a "trilogia involuntária" que "A Caverna" vem fechar - no meio está "Todos os Nomes" -, constituindo uma "espécie de visão do estado da humanidade".
PÚBLICO - "A Caverna" não é propriamente uma descida aos infernos. Em relação ao "Ensaio Sobre a Cegueira", em que o autor nos coloca dentro do horror, aqui estamos sempre de fora, e quando entramos, saímos logo, como os protagonistas, aliás.
JOSÉ SARAMAGO - Saiem, mas sabem que o que faziam [a olaria] já não serve a ninguém e que o futuro é incerto. Essa saída faz-se pelo amor, duplamente, o de Marçal e Marta, o de Cipriano e Isaura. O amor construído a pouco e pouco, que tem medo de ser. Mas é efectivamente um livro cheio de ternura.

Que tempo e lugar tinha na cabeça?
Pode ser o nosso tempo. Não houve nenhuma catástrofe nuclear nem ecológica. Aquele rio está podre, mas não faltam rios podres... o lugar concreto que tinha na cabeça é a minha própria aldeia [Azinhaga, concelho da Golegã], o rio da minha aldeia que cheira mal que tresanda... com as fábricas que despejam todas as imundíces. E há esse mundo que se extingue, que tem como paradigma a olaria.

Em vez do Centro, da Caverna, o autor opta por detalhar aquela vida artesanal, aquela humanidade arcaica.
Foi talvez a própria história que o determinou. Dei-me conta que havia qualquer coisa ali que se destingue do "Ensaio...", de "Todos os Nomes".

Como se a sua visão amarga e pessimista se tivesse suavizado?
Não, não penso melhor do mundo do que quando escrevi o "Ensaio...", nem haveria razões para isso. Digamos que aquela gente merecia outro tratamento. É uma espécie de piedade, que não é auto-comiseração, mas piedade pelo ser humano, que é tão frágil. Mas o autor tem a consciência de que nunca vivemos tanto na Caverna de Platão como agora. Acho que o Platão escreveu o livro sétimo da "República" para nós. É que as pessoas estão tão contentes de ser aquilo que são... E sem querer chocar ninguém, estão a ser tão pouca coisa que não creio que seja "A Caverna" que os vai iluminar, provavelmente necessitariam de um choque mais violento, um choque com os seus próprios interesses. Vivemos em plena egonia, é o egonismo não só dos que têm, mas dos que fazem de conta que são ricos. Andamos no fingimento.

 

Na disputa de poder interno, o PCP é um partido como os outros

A ilusão da Caverna. E qual é a alternativa?
O caminho da participação, da indignação, uma insurreição ética. Os partidos políticos, particularmente os de esquerda, deveriam meter os seus programas numa gaveta e pôr na mesa e na prática uma coisa tão simples como a carta dos direitos humanos.

Nessa lista incluía o PCP?
Evidentemente.

É o seu partido, ultimamente rasgado por debates internos que têm a ver com liberdades tão básicas como a de expressão.
O que está em debate no PCP é que há uns que se anunciam assim e outros que se anunciam assado e, como é normal em qualquer partido, uns pretendem retirar os outros para ocuparem o seu lugar. Nesse plano, o da disputa do poder interno, o PCP é um partido como outro qualquer. Mas não está a acontecer nada de extraordinário, tudo isto se passou noutros partidos comunistas. As coisas vivem, têm um tempo, corrompem-se, fragmentam-se. O unanismo não é possível. Costumo dizer que não deixo o meu partido sobre a condição de que o meu partido não me deixe a mim.

O partido deixá-lo significa o quê?
Deixar o partido de ser o que é, aquilo que me fez entrar nele. Mas não vejo outro onde pudesse estar. Se o partido me deixar, não vale a pena virem-me com cantos de sereia. Se houver essa mudança, que pode acontecer, não me verão noutro. O PCP nem sempre me tratou bem, mas não vale a pena levantar agora a crosta das feridas.

Porque estão saradas?
Saradas estão, mas esquecidas não.

Há uma pergunta, que calculo que para si seja particularmente incómoda, que tem a ver com o livro de Carlos Brito.
Qual livro de Carlos Brito?

O livro que a sua editora, a Caminho, recusou e que foi publicado agora na Campo das Letras.
Nada a dizer. Não sei nada. Não conheço a história.

ente-se longe, Portugal não é a sua casa?
Não é a minha casa mas é o meu país. Sinto-me um português... pago os meus impostos aqui, se isso interessa a alguém... o que me dói é que esta terra tenha deixado de sonhar.

Imagina-se a voltar?
Creio que não. Mas mesmo lá [em Lanzarote], as coisas não são tão fáceis. Agora estão a chegar às Canárias clandestinos de África, e desenvolvem-se movimentos racistas, xenófobos, contra os quais protestei. E no outro dia, em Las Palmas, houve uma manifestação em que se gritava: "Saramago vai-te embora!".

E o senhor vai?
Não. Mas eu venho cá quase todos os meses, e sou apenas um dos muitos que vivem longe... o Jorge de Sena estava longe, o Rodrigues Miguéis também, o Eduardo Lourenço está longe, e alguns eventualmente não estão longe porque não podem, ou não encontraram razão para isso. Eu não faço tanta falta, e a que faço satisfaço-a escrevendo, em português.

O que está a escrever?
Vou escrever um prefácio para um dos livros da Bíblia, uma edição italiana, em volumes. Para uma colecção da Companhia das Letras, brasileira, vou fazer uma história policial com uma figura literária, escolhi o Alexandre Dumas. Há ainda "O Livro das Recordações", que afinal se chamará "O Livro da Lembrança", tenho que voltar aos "Cadernos de Lanzarote", que só interrompi para que não fosse um relato contínuo de viagens. E nestes últimos dias, em Lanzarote, apareceu-me uma ideia para um romance, "A Viagem do Elefante". Não quero dizer mais que o título.

 

"Não tenho nenhuma relação com Deus"

A propósito da Bíblia, a sua relação com Deus...
Não tenho nenhuma relação com Deus! Tenho uma relação com um texto que se chama Bíblia.

A sua tranquilidade é tanta que consiga dizer isso assim?
Total, total. Vivo tão tranquilamente com a Bíblia, como vivo com o Corão, com os Vedas, com o Talmude... são obras humanas! A Bíblia levou quatro mil anos a escrever! Se se considera legítimo, não havendo provas, que se diga que Deus existe, também se deve considerar legítimo que se diga que não. Há coisas que para mim são básicas: as religiões nunca serviram para aproximar as pessoas, pelo contrário; matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino, e assim se tem feito; se há guerras absurdas são as religiosas; se amanhã um Deus - porque se houver Deus é um único - tiver que chamar toda esta gente para lhe pedir contas, vai encontrar-se com milhares de religiões, sub-religiões, seitas, etc. E o que é que ele vai fazer? Premiar uns quantos que sejam católicos e islamistas e castigar os outros? Tudo quanto se passe em nome de Deus é pura farsa, puro engano, pura mentira, ninguém pode falar em nome de Deus, se Deus existe, não disse a ninguém nada. Não disse. Para mim não existe Deus.

E como é que se pensa na morte?
É enquanto estamos vivos que devemos pensar na morte. Qual é a diferença de pensar na morte crendo ou não crendo?

Para um crente a morte não é o fim.
Mas porque é que a morte não é o fim, se tudo tem que ter um fim? Tem algum sentido, numa galáxia tão imensa, que Deus tenha posta a sua suprema obra aqui?!!! Num planeta que tem uma história, que tem uma bola de fogo, que tem ainda fogo dentro? A vida é uma operação química de todos os dias e foi assim que começou. O milagre, a coisa genial, é que fomos capazes de inventar tudo. Até fomos capazes de inventar Deus. O que é que há fora da minha cabeça? Na minha cabeça pode estar Deus, pode estar o Diabo. Aqui [aponta para a cabeça] é que está o bem, o mal, a justiça, conceitos que transporto, aqui! E note que não sou má pessoa, nem preciso de Deus para ser boa pessoa, tentar, pelo menos. E não me tenho dado mal.