O Ano da Morte
de Ricardo Reis
José Saramago



 


In PÚBLICO de 14 de Outubro de 1998
Entrevista com José Saramago, horas depois da chegada a Lisboa
"A minha casa é Lanzarote"
Por Alexandra Lucas Coelho

Não pensa voltar a viver em Portugal. Não será mais candidato pelo PCP. Não falará mais sobre a regionalização. Continuará a escrever e a intervir, como até aqui, quando for "necessário". A sua autobiografia até aos 14 anos, "O Livro das Tentações" revelará um outro José Saramago: "O pai espiritual do homem que sou é a criança que fui". O homem que desde que é Nobel ainda não escreveu uma palavra. Nem no diário: "Era impossível".

Voou de casa, Lanzarote, para regressar ao sangue, que é Portugal. Não lhe peçam para voltar de vez. Seria uma "chantagem sentimental". Emocionado, viu ontem Lisboa de uma varanda. Depois dos abraços, das flores vermelhas e da conferência de imprensa, levaram-no para um jantar oficial. O seu editor anunciou que o próximo romance, "A Caverna", sairá em Novembro de 1999. "O compromisso é teu, não meu", respondeu-lhe Saramago, sorridente. À noite, o Nobel acolheu-se num hotel do centro de Lisboa, que é o que se faz quando se está longe de casa.

Pondera regressar a Portugal?
José Saramago - Vamos lá ver... Não pode ser entendido que a perfeição da minha relação com Portugal só será atingida se eu voltar a viver em Portugal. Não é razoável, e eu chamaria a isso, até, uma espécie de chantagem sentimental.

Não encara essa hipótese?
Não, não encaro de facto essa hipótese. Não é que não pudesse acontecer e não sei se não acontecerá um dia, enfim... No futuro imediato tenho ideias sobre o que poderá acontecer, mas num futuro remoto nunca se sabe.

E o futuro imediato é Lanzarote...
O futuro imediato e não só - a seguir ao imediato - é Lanzarote, onde eu sou muito querido. Eu podia estar a viver num lugar que fosse indiferente, em vários pontos da terra, por algum motivo, a viver temporariamente. Neste caso não é assim. Nós [Saramago e a mulher, Pilar del Rio] fizemos uma casa, a casa está ali, temos um jardim, temos árvores, temos uma vida feliz, uma vida tranquila, não podemos desejar nada melhor. Os amigos que vão a Lanzarote ficam encantados. Não é uma ilha para todos os gostos, há pessoas que chegam e não gostam, acham que a ilha é insuportável, que é árida, seca, que são só pedras, montanhas, vulcões, campos de lava... Quem vai à espera de árvores, de passarinhos a cantar e de regatinhos circulando por entre a erva, não encontra. Tem é uma beleza de outra natureza, uma beleza áspera, dura... aqueles basaltos, aqueles barrancos... Às vezes tenho pensado que se eu tivesse procurado uma paisagem que correspondesse a uma necessidade interior minha, creio que essa paisagem é Lanzarote.

A sua casa é Lanzarote...
A minha casa é Lanzarote, neste momento. Em Lisboa já nem sequer tenho casa. Durante um ano ainda a conservámos, mas agora já não. Teria todas as razões para voltar se me sentisse mal onde estou. A Pilar vivia em Sevilha e veio viver para Lisboa. Se, por acaso, ela não tivesse podido viajar para Lisboa, teria eu ido viver para Sevilha. Porque queríamos estar juntos, evidentemente. Afinal de contas, agora, nem Sevilha, nem Lisboa - estamos em Lanzarote, estamos muito bem e não penso voltar, de facto.

Mas também já não é porque está de mal com Portugal...
Não, não. Isto de dizer que não penso voltar, nem tem sentido, porque eu estou cá. Mesmo quando não estou, estou. Estou pela memória, estou pelos amigos, estou pelos leitores, estou pelas notícias. Eu hoje [ontem], no aeroporto, dizia: esquecer-me desta terra seria o mesmo que esquecer o meu próprio sangue, e isso não se pode.

Vai comprar a sua casa da aldeia da Azinhaga?
Não sei, não sei, pode acontecer que sim. Mas a memória que eu quero é a memória que eu guardo dentro da minha cabeça. Há uma questão aqui: a casa que teria significado para mim, real significado, já não existe. Era a casa dos meus avós maternos, o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa. A casa onde eu nasci, vivi lá dois anos, apenas. Em casa dos meus avós é que eu vivi as minhas experiências.

Era a casa aonde regressava nas férias...
Sim, a casa dos avós de que falarei no "Livro das Tentações", como falarei de tanta gente, de tios meus, dos rios que passam na minha aldeia, o rio Alonda e um pouco mais abaixo, o rio Tejo, onde se vai à pesca... tudo isso que é a vida dum rapazinho. A partir daí, não me interessa nada. Quero é recuperar, saber, reinventar a criança que eu fui. Pode parecer uma coisa um pouco tonta, um senhor nesta idade estar a pensar na criança que foi. Mas é porque eu acho que o pai da pessoa que eu sou é essa criança que eu fui. Há o pai biológico, e a mãe biológica, mas eu diria que o pai espiritual do homem que eu sou é a criança que eu fui.

Quando já esperávamos "O Livro das Tentações", anunciou que outro romance se tinha interposto, "A Caverna". Em que fase está?
Já está a ser escrito mas, enfim, está muito no principio. Todos os meus romances nascem de imagens que de repente me ferem a atenção, que me atraem. Normalmente, desencadeiam-se logo três ou quatro passos no caminho que ainda falta percorrer, e que vai ser longo, evidentemente. "A Caverna" nasceu aqui há uns tantos meses, numa situação que eu depois descreverei. O livro que se devia ter seguido (até antes, ao "Ensaio sobre a Cegueira"), seria "O Livro das Tentações", o tal que é a minha autobiografia até aos 14 anos, que é um livro cuja ideia - e algum trabalho - me acompanha desde há uma quantidade de anos.

E que foi adiando...
Eu não o adio, o que acontece é que ele vai sendo adiado por outros trabalhos que me aparecem. Depois, é um livro que eu acho que posso escrever em qualquer altura, precisamente porque tem a ver com um período da minha vida, portanto ela está lá, a memória funciona... Se me aparece uma ideia para um romance, eu tenho que tratar dela imediatamente, não por medo de que ela desapareça, mas pela própria urgência com que ela se impõe: "aqui estou, tens que tratar de mim".

Entretanto, como vai ser a sua acção política? Vai intervir de alguma forma na campanha da regionalização? É possível que volte a ser candidato do Partido Comunista, num lugar não elegível?
Embora eu seja eleitor aqui, eu vivo lá fora, portanto, participação em campanhas não tem sentido nenhum. Além disso, eu sei perfeitamente que, se se apresentasse essa hipótese, o meu partido tem suficiente bom gosto para não me pedir - agora que eu sou prémio Nobel - que eu participe numa campanha. Porque aos olhos de toda a gente isso seria interpretado como um aproveitamento político de algo que não tem nada que ver com a política, que é o prémio. Portanto, quer o meu partido quer eu, somos dotados de suficiente bom gosto para que isso não aconteça. E há outra razão: no que se refere à regionalização não estamos de acordo.

Exactamente. Não podemos então esperar intervenções suas, adversas à posição do seu partido?
Não, de modo nenhum. Eu tornei pública a minha posição em relação a isso, e a partir daí ponto final, não tenho mais que dizer. Aliás, já fui convidado três ou quatro vezes para participar em debates, para escrever depoimentos para jornais, e digo que não, porque não entro nisso. Também não quero que me transformem numa espécie de bola de pingue-pongue que é usada quando convém.

Como vai viver o seu tempo de prémio Nobel da Literatura? Imagina-se que tenha recebido uma imensidão de convites... vamos vê-lo viajar ainda mais? Vai ter tempo para escrever?
Sim, sim, vou arranjar tempo para escrever. Se o papel do prémio Nobel é ser passeado pelo mundo, ser exibido, é evidente que eu não farei isso. Este prémio Nobel vai continuar a ser quem é, participando como até aqui, com intervenções como até aqui, naquilo que considerar útil, indispensável e necessário. Não assumirei o prémio Nobel como uma "miss" de beleza que tem de ser exibida em toda a parte... não aspiro a esses tronos, nem poderia, claro...!
Mas, se o que tenho vindo a fazer até agora tem tido alguma utilidade para alguém, como voz, como crítica, como análise das circunstâncias, dos factos, da vida política, da vida social, da situação em que o mundo está, então assim continuará a ser. Pode surpreender algumas pessoas que o prémio Nobel não se limite a desfrutar das satisfações imediatas de quem ganhou, mas o que eu quero dizer é que a única coisa que muda é isso, é que antes não tinha o prémio e agora o tenho. O homem é o mesmo e continuará a escrever. Também não me deitarei à sombra do prémio.

Escreveu alguma coisa desde quinta-feira, o dia do anúncio?
Você escreveria?

Escreveu?
Já imagina que era impossível. Claro que não. Nem uma palavra.