Não pensa voltar
a viver em Portugal. Não será mais candidato
pelo PCP. Não falará mais sobre a regionalização.
Continuará a escrever e a intervir, como até
aqui, quando for "necessário". A sua autobiografia
até aos 14 anos, "O Livro das Tentações"
revelará um outro José Saramago: "O pai
espiritual do homem que sou é a criança que
fui". O homem que desde que é Nobel ainda não
escreveu uma palavra. Nem no diário: "Era impossível".
Voou de
casa, Lanzarote, para regressar ao sangue, que é
Portugal. Não lhe peçam para voltar de vez.
Seria uma "chantagem sentimental". Emocionado,
viu ontem Lisboa de uma varanda. Depois dos abraços,
das flores vermelhas e da conferência de imprensa,
levaram-no para um jantar oficial. O seu editor anunciou
que o próximo romance, "A Caverna", sairá
em Novembro de 1999. "O compromisso é teu, não
meu", respondeu-lhe Saramago, sorridente. À
noite, o Nobel acolheu-se num hotel do centro de Lisboa,
que é o que se faz quando se está longe de
casa.
Pondera regressar a Portugal?
José Saramago - Vamos lá ver... Não
pode ser entendido que a perfeição da minha
relação com Portugal só será
atingida se eu voltar a viver em Portugal. Não é
razoável, e eu chamaria a isso, até, uma espécie
de chantagem sentimental.
Não
encara essa hipótese?
Não, não encaro de facto essa hipótese.
Não é que não pudesse acontecer e não
sei se não acontecerá um dia, enfim... No
futuro imediato tenho ideias sobre o que poderá acontecer,
mas num futuro remoto nunca se sabe.
E
o futuro imediato é Lanzarote...
O futuro imediato e não só - a seguir ao imediato
- é Lanzarote, onde eu sou muito querido. Eu podia
estar a viver num lugar que fosse indiferente, em vários
pontos da terra, por algum motivo, a viver temporariamente.
Neste caso não é assim. Nós [Saramago
e a mulher, Pilar del Rio] fizemos uma casa, a casa está
ali, temos um jardim, temos árvores, temos uma vida
feliz, uma vida tranquila, não podemos desejar nada
melhor. Os amigos que vão a Lanzarote ficam encantados.
Não é uma ilha para todos os gostos, há
pessoas que chegam e não gostam, acham que a ilha
é insuportável, que é árida,
seca, que são só pedras, montanhas, vulcões,
campos de lava... Quem vai à espera de árvores,
de passarinhos a cantar e de regatinhos circulando por entre
a erva, não encontra. Tem é uma beleza de
outra natureza, uma beleza áspera, dura... aqueles
basaltos, aqueles barrancos... Às vezes tenho pensado
que se eu tivesse procurado uma paisagem que correspondesse
a uma necessidade interior minha, creio que essa paisagem
é Lanzarote.
A
sua casa é Lanzarote...
A minha casa é Lanzarote, neste momento. Em Lisboa
já nem sequer tenho casa. Durante um ano ainda a
conservámos, mas agora já não. Teria
todas as razões para voltar se me sentisse mal onde
estou. A Pilar vivia em Sevilha e veio viver para Lisboa.
Se, por acaso, ela não tivesse podido viajar para
Lisboa, teria eu ido viver para Sevilha. Porque queríamos
estar juntos, evidentemente. Afinal de contas, agora, nem
Sevilha, nem Lisboa - estamos em Lanzarote, estamos muito
bem e não penso voltar, de facto.
Mas
também já não é porque está
de mal com Portugal...
Não, não. Isto de dizer que não penso
voltar, nem tem sentido, porque eu estou cá. Mesmo
quando não estou, estou. Estou pela memória,
estou pelos amigos, estou pelos leitores, estou pelas notícias.
Eu hoje [ontem], no aeroporto, dizia: esquecer-me desta
terra seria o mesmo que esquecer o meu próprio sangue,
e isso não se pode.
Vai
comprar a sua casa da aldeia da Azinhaga?
Não sei, não sei, pode acontecer que sim.
Mas a memória que eu quero é a memória
que eu guardo dentro da minha cabeça. Há uma
questão aqui: a casa que teria significado para mim,
real significado, já não existe. Era a casa
dos meus avós maternos, o meu avô Jerónimo
e a minha avó Josefa. A casa onde eu nasci, vivi
lá dois anos, apenas. Em casa dos meus avós
é que eu vivi as minhas experiências.
Era
a casa aonde regressava nas férias...
Sim, a casa dos avós de que falarei no "Livro
das Tentações", como falarei de tanta
gente, de tios meus, dos rios que passam na minha aldeia,
o rio Alonda e um pouco mais abaixo, o rio Tejo, onde se
vai à pesca... tudo isso que é a vida dum
rapazinho. A partir daí, não me interessa
nada. Quero é recuperar, saber, reinventar a criança
que eu fui. Pode parecer uma coisa um pouco tonta, um senhor
nesta idade estar a pensar na criança que foi. Mas
é porque eu acho que o pai da pessoa que eu sou é
essa criança que eu fui. Há o pai biológico,
e a mãe biológica, mas eu diria que o pai
espiritual do homem que eu sou é a criança
que eu fui.
Quando
já esperávamos "O Livro das Tentações",
anunciou que outro romance se tinha interposto, "A
Caverna". Em que fase está?
Já está a ser escrito mas, enfim, está
muito no principio. Todos os meus romances nascem de imagens
que de repente me ferem a atenção, que me
atraem. Normalmente, desencadeiam-se logo três ou
quatro passos no caminho que ainda falta percorrer, e que
vai ser longo, evidentemente. "A Caverna" nasceu
aqui há uns tantos meses, numa situação
que eu depois descreverei. O livro que se devia ter seguido
(até antes, ao "Ensaio sobre a Cegueira"),
seria "O Livro das Tentações", o
tal que é a minha autobiografia até aos 14
anos, que é um livro cuja ideia - e algum trabalho
- me acompanha desde há uma quantidade de anos.
E
que foi adiando...
Eu não o adio, o que acontece é que ele vai
sendo adiado por outros trabalhos que me aparecem. Depois,
é um livro que eu acho que posso escrever em qualquer
altura, precisamente porque tem a ver com um período
da minha vida, portanto ela está lá, a memória
funciona... Se me aparece uma ideia para um romance, eu
tenho que tratar dela imediatamente, não por medo
de que ela desapareça, mas pela própria urgência
com que ela se impõe: "aqui estou, tens que
tratar de mim".
Entretanto,
como vai ser a sua acção política?
Vai intervir de alguma forma na campanha da regionalização?
É possível que volte a ser candidato do Partido
Comunista, num lugar não elegível?
Embora eu seja eleitor aqui, eu vivo lá fora, portanto,
participação em campanhas não tem sentido
nenhum. Além disso, eu sei perfeitamente que, se
se apresentasse essa hipótese, o meu partido tem
suficiente bom gosto para não me pedir - agora que
eu sou prémio Nobel - que eu participe numa campanha.
Porque aos olhos de toda a gente isso seria interpretado
como um aproveitamento político de algo que não
tem nada que ver com a política, que é o prémio.
Portanto, quer o meu partido quer eu, somos dotados de suficiente
bom gosto para que isso não aconteça. E há
outra razão: no que se refere à regionalização
não estamos de acordo.
Exactamente.
Não podemos então esperar intervenções
suas, adversas à posição do seu partido?
Não, de modo nenhum. Eu tornei pública a minha
posição em relação a isso, e
a partir daí ponto final, não tenho mais que
dizer. Aliás, já fui convidado três
ou quatro vezes para participar em debates, para escrever
depoimentos para jornais, e digo que não, porque
não entro nisso. Também não quero que
me transformem numa espécie de bola de pingue-pongue
que é usada quando convém.
Como
vai viver o seu tempo de prémio Nobel da Literatura?
Imagina-se que tenha recebido uma imensidão de convites...
vamos vê-lo viajar ainda mais? Vai ter tempo para
escrever?
Sim, sim, vou arranjar tempo para escrever. Se o papel do
prémio Nobel é ser passeado pelo mundo, ser
exibido, é evidente que eu não farei isso.
Este prémio Nobel vai continuar a ser quem é,
participando como até aqui, com intervenções
como até aqui, naquilo que considerar útil,
indispensável e necessário. Não assumirei
o prémio Nobel como uma "miss" de beleza
que tem de ser exibida em toda a parte... não aspiro
a esses tronos, nem poderia, claro...!
Mas, se o que tenho vindo a fazer até agora tem tido
alguma utilidade para alguém, como voz, como crítica,
como análise das circunstâncias, dos factos,
da vida política, da vida social, da situação
em que o mundo está, então assim continuará
a ser. Pode surpreender algumas pessoas que o prémio
Nobel não se limite a desfrutar das satisfações
imediatas de quem ganhou, mas o que eu quero dizer é
que a única coisa que muda é isso, é
que antes não tinha o prémio e agora o tenho.
O homem é o mesmo e continuará a escrever.
Também não me deitarei à sombra do
prémio.
Escreveu alguma coisa desde quinta-feira,
o dia do anúncio?
Você escreveria?
Escreveu?
Já imagina que era impossível. Claro que não.
Nem uma palavra.