In
PÚBLICO de 2 de Novembro de 1991
O novo romance de José Saramago,
"O Evangelho Segundo Jesus Cristo", é posto
à venda no dia 7
"Deus quis este livro"
Por Torcato
Sepúlveda
Que o leitor não espere de "O
Evangelho Segundo Jesus Cristo" - o mais recente romance
de José Saramago, a ser lançado no próximo
dia 7 - excesso e imprecação. "O Evangelho"
é um livro herético, mas contido, austero,
como o tema exige. "É herético apenas
porque propõe uma escolha diferente da habitual",
diz o escritor. Um homem sereno, que não teme as
reacções da Igreja Católica: "A
Igreja já se habituou a ser discreta".
Saramago tem consciência de que este livro, se tivesse
sido escrito até ao terceiro quartel do século
XVIII, levaria o autor à fogueira. Porquê?
Porque lá estão todas as inquietações
que sempre afligiram o homem: Quem sou eu? Quem é
Deus? Porque tenho de morrer? O que é o bem e o mal?
É evidente que num evangelho assim não se
encontram ideias feitas. Tudo ali é interrogação.
E o próprio Jesus nos surge como um homem normal
que não espera licença de Deus para pensar.
Porque, como diz a um discípulo, se Ele nos deu pernas
e nós não esperamos ordem para andar, também
não devemos esperar ordem para pensar.
Este livro são vários livros, o que não
é de espantar no autor de "O Ano da Morte de
Ricardo Reis". É o livro das heterodoxias (por
ele passam o maniqueísmo, o quietismo, os Irmãos
do Livre Espírito); um livro mariano (não
tanto porque valorize a personalidade da mãe de Jesus,
mas porque enaltece a figura de Maria Madalena, ou Maria
de Magdala, que com ele dorme e dele faz um adulto); um
livro freudiano, de iniciação à vida
e seus dramas (Jesus corta com a família de forma
violenta). Um livro maldito (a educação de
Jesus é entregue ao Diabo pelo próprio Deus).
"O Evangelho" passará a ser o livro dos
livros de Saramago. Nele se concentram todas as obsessões
do autor, a principal das quais é a do livre arbítrio
do homem perante as forças que o oprimem. Por isso
o romance incomoda ainda de forma suplementar: o Deus de
Israel é um político desabusado e um tanto
cínico que pretende aumentar o seu poder e que para
esse fim utiliza os homens, todos os homens, incluindo o
próprio filho. Que lhe resiste. Porque este filho
tem a pouca sorte de ter dois pais, deles herdando as culpas.
De José herda o remorso de um "crime por omissão":
José salvou o filho da matança dos inocentes,
mas não avisou as outras famílias que corriam
o mesmo risco. De Deus, o pai celeste, herda a impotência
essencial: não conseguir evitar a morte às
suas criaturas. Assim, Jesus não ressuscita Lázaro,
porque Maria de Magdala o avisa de que não há
homem algum que tenha a pesar-lhe na consciência pecados
tais que mereça morrer duas vezes. Jesus afasta-se
para chorar...
Jesus não teve só dois pais; teve também
duas mães. Maria, sua mãe biológica,
e Maria de Magdala que tudo lhe ensinou: "Aprende o
meu corpo"; "Aprende o teu corpo", sussurrou-lhe
ela na primeira noite de amor, a primeira de uma longa série.
É esta humanização de Jesus que eleva
o livro e eleva o próprio Jesus. Que num último
movimento de revolta tenta escapar aos ditames políticos
do Deus-Pai e se faz condenar como Rei dos Judeus, como
Filho do Homem, e não como Filho de Deus. Assim,
seria poupada à humanidade uma série de catástrofes
que a nova religião iria causar. Por isso, mais doloroso
do que o grito de Jesus na cruz, "Homens, perdoai-lhe,
porque ele não sabe o que fez", é essa
outra pergunta que Jesus-menino faz no "segredo do
seu coração": "Quando chegará,
Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres
os teus erros perante os homens."
Tem consciência de que este
livro se fosse escrito até meados do século
XVIII, autor e livro seriam queimados?
Bom, seriam com certeza. O livro não se queixaria muito,
mas o autor que teria de passar um mau bocado.
Este livro é um livro de adolescência
e de crescimento. É como se a história de Jesus
fosse a história de um homem normal, a história
de uma criança, de um adolescente que enfrenta o mundo,
o poder, a família.
Deve ser visto assim. Pode-se estranhar, tendo em conta o
modo como está organizada a vida de Jesus nos Evangelhos,
que eu tenha dado tanta importância justamente à
infância e à adolescência...
Que são as fases menos conhecidas
da vida de Jesus...
São as fases praticamente
desconhecidas. Mas não podemos andar sempre a dizer,
sem tirar daí todas as consequências, que o mais
importante na vida de um ser humano é a infância
e a adolescência. É justamente esse Jesus que
me interessa mais, não só por uma razão
puramente economicista de preencher o espaço que nos
Evangelhos é deixado praticamente vazio, mas também
para tratar desde o princípio a relação
que Jesus estabelece com Deus. Não tanto saber se Jesus
é filho de Deus, ou como é que é filho
ou até que ponto é filho. O que me interessa,
e isso começa a ser definido desde logo, desde a infância
e pela a adolescência dentro, é a relação
que ele tem com Deus. Comparativamente, o fim da vida de Jesus
ocupa, no meu livro, um espaço bastante reduzido. A
parte substancial é a infância e a adolescência,
embora no que se refere a conclusões a tirar, se algumas
se tiram, é nas páginas finais que as encontramos.
Tudo se ata então num nó a que apetece chamar
górdio, porque não tem solução.
Precisamente. Encontro, no seu Evangelho,
sinais óbvios de algumas heterodoxias: o maniqueísmo,
o quietismo, e para mim a mais fascinante de todas: uma espécie
de revolta contra o pai, contra Deus, revolta contra o poder,
a que se chamou, na Idade Média, os Irmãos do
Livre Espírito. Mas o quietismo do seu livro decorre
desse nó górdio. Isto é, Cristo rebelou-se
contra a família e contra Deus. Depois tenta solucionar
o problema pela astúcia. Mas quando chega ao fim, percebe
que foi um joguete, um títere de Deus. Deus é
o poder? Parece que estamos sempre dentro dele, que não
conseguimos livrar-nos dele. Não se pode concluir que
mais vale ficar parado?
O poder está aí e nós não podemos
libertarmo-nos dele. O que podemos e devemos é rebelar-nos
constantemente contra ele. E aqui estabeleço uma relação
entre dois livros que afinal de contas parece que não
têm nada que ver um com o outro, mas que são
sucessivos no tempo: a "História do Cerco de Lisboa"
e "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". O que o revisor
escreve no primeiro é o "não" que
se opõe à chamada verdade histórica oficial.
Ele diz "não", e a partir daí tem
que inventar outra coisa. É certo que o "não"
inevitavelmente acaba por converter-se em "sim".
Converte-se porque parece que não se pode fugir a isso,
mas tem de acontecer outro "não" e sucessivos
"nãos" que se transformam em "sim".
É uma cadeia que não sei se parará alguma
vez.
Mas este livro é mais radical
nisso, porque Jesus, quando tenta a última astúcia
contra Deus, percebe antes de morrer que falhou. Há
um sentimento de derrota.
Uma derrota total. Jesus é
vencido, tem a consciência de que foi vencido e o livro
parece que fecha dessa maneira. É realmente um nó
górdio que não pode ser desatado porque sempre
o poder se imporá. Neste caso é Deus, mas podia
ser o poder civil ou militar. É um poder que tem a
força, que determina, que condiciona e que empurra
cada um de nós e todos juntos para um determinado fim
que é servi-lo. É o que acontece a Jesus. Jesus
está ali para servir o poder de Deus e para ser o instrumento,
digamos a vítima sacrificial, do alargamento do poder
de Deus a outras gentes e a outras terras. No fundo, trata-se,
no caso de Deus, de alargar o seu espaço vital, a sua
área de influência. Mas há um personagem
de que ainda não falamos mas que tem que ser mencionado:
o Diabo.
Aí entra o maniqueísmo:
se o bem alastra, o mal também. E não se sabe
o que é o mal e o que é o bem.
Suponho - suponho apenas - que a maneira de desatar este nó
górdio é a a interrogação sistemática,
por uma espécie de imposição interior,
interrogar sempre mas interrogar no sentido da contestação.
Interrogar primeiro no sentido da necessidade da compreensão
- pois só se chega à compreensão pela
interrogação - mas também no da contestação.
Atitude constante ao longo do livro, venha de onde vier: de
Jesus, do Diabo. Jesus, quando tem 13 anos, vai ao templo
para saber o que é a culpa, e lá se encontram
mais dois judeus a interrogar o escriba sobre questões
que no fundo são afins. Chegaríamos então
à terceira heresia, que é o uso da nossa razão.
Jesus usa a razão para obrigar Deus a revelar o futuro
da religião que vai ser fundada sobre o sacrifício
dele. Mas não pode ir mais longe e quando nessa pequena
astúcia final, quase infantil, em que julga poder escapar
por esse artifício, esse subterfúgio, esse...
Afirmar-se apenas como homem e dizer
"eu sou o Rei dos Judeus", e não "sou
o filho de Deus".
Mesmo isso falha porque já estava previsto. Então
a única solução para nos soltarmos do
nó górdio é não pensar que a razão
em cada momento nos dá a resposta definitiva. Não
há nada definitivo, é constantemente perguntar,
constantemente contestar. É a margem de liberdade que
nos resta como seres humanos na relação com
o poder, neste caso o poder de Deus, e com todo o poder.
Essa atitude tem alguma coisa a ver
com a sua experiência pessoal em relação
ao falhanço do comunismo?
No que se refere à minha própria vivência
política e ideológica, se há alguma coisa
de que me recrimino hoje é talvez - ainda me dou o
beneficio da dúvida - ter interrogado menos do que
devia, ter contestado menos do que devia e ter exigido menos
do que devia. Se não fosse essa circunstância
- que não afecta nem retira nada do que é essencial
na relação que mantenho com essa vivência,
com essa ideologia - talvez eu não tivesse sido capaz
de ir tão longe. Suponho que fui longe. Mas esta minha
costela interrogativa e exigente é coisa antiga que
se tornou muito mais clara e definida neste livro. Concordo
consigo nesse paralelo, nessa coincidência, nesse cruzamento
possível. Tem razão.
Este livro são muitos livros.
Tudo são muitas coisas.
Este "Evangelho" é
também um livro mariano, não no sentido da recuperação
da figura de Maria, que é uma mãe provável
e plausível, com as dúvidas todas que uma mãe
tem quando um adolescente chega a casa com novidades, e Jesus
trazia muitas novidades para casa. Mas é um livro mariano
pela grande força que a mulher traz para a experiência
de Jesus. Um rapaz com dois pais e, como se já não
lhe chegasse essa desgraça, também tem duas
mães: Maria e a segunda Maria, Maria Madalena, ou de
Magdala, a amante que a certa altura o trata por filho.
Devo confessar-lhe que estava para mim muito claro que Jesus
teve dois pais . Mas ter duas mães é qualquer
coisa que se me apresentou agora com uma nitidez completa
depois de você me ter chamado a atenção
para isso. Porque de uma certa maneira Jesus tem efectivamente
duas mães. Teve que nascer duas vezes.
E a mãe natural percebe isso
muito claramente.
Ela percebe isso claramente quando
tem o encontro com Maria de Magdala nas bodas de Canaã.
Reconhece então que o seu tempo chegou ao fim e entrega
Jesus a essa outra mulher que é ao mesmo tempo amante,
mulher no sentido de companheira se se quiser, e mãe.
A certa altura, talvez sem eu saber muito bem porquê,
levei Maria de Magdala a chamar-lhe filho.
Ela chama-lhe filho e ele não
precisa de lhe chamar mãe, é uma coisa tácita
entre eles.
A aprendizagem que Jesus faz com o pastor de um grande rebanho,
que é o Diabo - um grande rebanho, em que os animais
as ovelhas, os carneiros, as cabras e os bodes apenas morrem
de morte natural, é um rebanho que vai crescendo constantemente.
E não se diga que é o rebanho do mal, seria
demasiado fácil. É o rebanho da vida, de uma
certa forma de vida livre sem sujeições nem
teias que o Diabo se limita a conduzir sem interferir. É
o coordenador, é o que mantém aquele rebanho
reunido -, essa aprendizagem mostra-se inacabada. O próprio
Diabo lhe diz "não aprendeste nada, tens que voltar
ao princípio". É que Jesus recusara sacrificar
um cordeiro a Deus, mas não resistira a sacrifica-lo
noutra altura, quando o cordeiro já era uma ovelha
Ora a aprendizagem é recomeçada
com a mulher.
A mulher. A primeira mulher que ele encontra, uma prostituta,
uma marginal - e que no momento em que o encontra deixa de
ser a prostituta - é necessária a Jesus.
Há outra vertente: a das relações
que Jesus estabeleceu com a família, com o próprio
pai. O pecado que o pai terreno cometeu - José não
avisou as outras famílias da matança das crianças
por Herodes - não o largou até muito tarde.
Eu não lhe chamaria pecado. Iria mais longe. Chamar-lhe-ia
crime por omissão.
A relação que ele estabelece
com a família terrena é complicada, freudiana.
Tanto com o pai do céu, como com o pai da terra, e
com a mãe.
Não é nada que eu tenha inventado para tornar
mais conflitivo o conflito. É qualquer coisa que decorre
muito simplesmente da leitura dos próprios Evangelhos.
A má relação de Jesus com os seus é
clara, está lá, é explicita. Nenhuma
razão é dada para isso. Pelo menos nos Evangelhos
não há nenhum indicio, mínimo que seja,
que nos leve a compreender porque é que ele não
quer aquela família. Porque dizer que minha mãe,
meu pai e meus irmãos são aqueles que me seguem,
é a rejeição formal, explícita
e pública de qualquer relação familiar.
Há alturas em que o Deus de
Israel, que é o Deus da guerra, um Deus terrível
e violento, se humaniza. Humaniza-se no sentido em que é
um político.
Isso tem uma espécie de eco final quando Pilatos é
posto perante a necessidade de julgar o Filho do Homem e o
sacerdote lhe diz: "Para nós Filho do Homem e
Deus é a mesma coisa". Ele diz, bem, isso a mim,
não me interessa. Se se tratasse dos meus deuses com
quem isso acontece constantemente, enfim, podia-me interessar,
neste caso não interessa nada. Este Deus de facto é
uma segunda vida de Deus, se se pode falar assim, ou deixa
de ser o Deus.....
Esse Deus dos Exércitos, esse Deus, digamos, das guerras,
esse Deus que de uma certa maneira, como os deuses gregos,
combatia ao lado do seu povo escolhido, eleito - como Minerva,
estou a lembrar-me do cerco de Tróia em que os deuses
combatiam ao lado do Heitor, do Aquiles, do Ajax -, este Deus,
Jeová, vai deixar de ser isso porque entendeu, como
político astuto que é, que se a guerra é
a política conduzida por outros meios, a pode conduzir
sem ela. Ele entende que o caminho é outro e que ele
vai servir-se de um outro meio para deixar de ser o pequeno
deus que é, de uma pequena região e de um povo
pequeno, para ser, se possível, católico, se
possível universal. E para isso aceita todos os arranjos
e conciliações. A verdade é que há
um acordo profundo - embora também seja duvidoso que
esta seja a palavra justa - entre Deus e o Diabo. Não
podemos esquecer que a educação prática
de Jesus é feita pelo Diabo. E Deus sabe-o. E o que
é mais singular - encontramos isso nos Evangelhos -
é que a primeira entidade que declara publicamente
Jesus filho de Deus é num encontro com o possesso Gadareno,
aquele que tinha dentro de si tantos demónios que se
chamava Legião. São esses demónios que
o saúdam, melhor, que lhe pedem: "Não nos
tortures filho do Altíssimo". Até aí
ninguém tinha falado em Jesus como filho de Deus.
Há quase três deuses
aqui: Deus, Cristo e um terceiro Deus. Você já
disse que não encontrava narrador nas suas obras, mas
há aqui um terceiro Deus, que é o narrador ou
o autor. De vez em quando interrompe a narração,
aliás numa técnica muito camiliana...
Sim, sim...
...com uma grande ironia, desmontando
a seriedade de alguns discursos, tanto das personagens como
dele próprio, narrador. Há ali omnipotência,
do autor ou do narrador, nessa interferência na acção.
Estamos a falar do poder da palavra, do verbo, num tema bíblico...
A velhíssima questão do narrador omnisciente.
Quando se fala dos meus livros, sempre se refere: "o
seu narrador". Do ponto de vista técnico aceito
que me separem a mim, autor, dessa entidade que está
por lá que é o narrador. Também não
vale a pena dizer que o narrador é uma espécie
de "alter ego" meu. Eu iria talvez mais longe, e
provavelmente com indignação de todos teóricos
da literatura, afirmaria: "Narrador, não sei quem
é". Parece-me, e sou leigo na matéria,
que no meu caso particular - e creio ter encontrado uma fórmula
que acho feliz para expressar isso - é como se eu estivesse
a dizer ao leitor: "Vai aí o livro, mas esse livro
leva uma pessoa dentro". Leva uma história, leva
a história que se conta, leva a história das
personagens, leva a tese, a filosofia, enfim, tudo o que se
quiser encontrar lá. Mas além de tudo isso leva
uma pessoa dentro, que é o autor. Não é
o narrador. Eu não sei quem é o narrador, ou
só o sei se o identificar com a pessoa que eu sou.
O meu narrador não é o narrador realista, que
está lá para contar o que aconteceu, sendo guiado
pelo autor que por sua vez se mantém distante. Pelo
contrário. Aquilo que procuro - embora sem saber muito
bem que o faço, se calhar vou compreendendo que andava
à procura depois de ter chegado - é uma fusão
do autor, do narrador, da história que é contada,
das personagens, do tempo em que eu vivo, do tempo em que
se passam todas essas coisas, um discurso globalizante em
que cada um destes elementos tem uma parte igual. Porque de
certa maneira, Jesus não é mais importante neste
livro do que outras personagens...
Chega a afirmar no "Evangelho"
que está a contar a história de Jesus, mas podia
estar a contar a história de qualquer rapaz da Galileia".
Podia chamar-se Jesus, podia até ser filho de outro
José e de outra Maria. Uma ideia minha, que expresso
de maneira nada científica, que o tempo não
é sucessão diacrónica, em que um acontecimento
vem atrás de outro; o que acontece projecta-se numa
imensa tela e tudo fica ao lado de tudo. Como se o homem de
Cromagnon estivesse colocado nessa tela ao lado do "David"
de Miguel Ângelo. Para o autor não há
passado nem futuro. O que vai ser já está a
acontecer. Para este autor, ao escrever estes livros, as coisas
passam-se assim.
Eça de Queiroz tentou uma Vida
de Cristo, nas "Prosas Bárbaras".
A própria "Relíquia" é a Paixão
de Cristo
Mas Eça é positivista,
baseia-se em Renan. O seu "Evangelho" não
participa do positivismo.
Tenho uma visão não positivista do Cristianismo.
Sou capaz de me atrever a uma firmação ousada,
há muita gente que não vai gostar dela: não
seríamos muito diferentes daquilo que somos se continuássemos
com a velha religião dos romanos, se andassem ainda
por aí Minerva, Júpiter, Vénus. O Cristianismo,
para além daquilo que trouxe - e trouxe coisas belíssimas,
tenho ali a "Paixão Segundo S. Mateus", de
J. S. Bach - deu lugar a uma arte que atingiu as mais excelsas
alturas, na pintura, na música, na poesia, na arquitectura,
na escultura. Produziu tipos humanos admiráveis, um
S. Francisco de Assis. Mas há o outro lado da balança:
o sangue, o sofrimento, a angústia, a renúncia,
o pecado. É uma religião de onde a alegria está
ausente, ou então há um certo tipo de alegria
que não passa pelo humano, pelo corpo.
O seu Jesus conheceu essa alegria
do corpo. É por isso que ele se revolta contra Deus.
Ele teve o conhecimento do seu próprio corpo, lembre-se
do encontro dele com Maria de Magdala. Há duas frases
dela absolutamente necessárias: "Aprende o teu
corpo"; e depois, "Aprende o meu corpo". O
cristianismo recusa o corpo, recusa o invólucro necessário.
Vivemos num país profundamente
católico - ainda o é...
... tenho algumas dúvidas, tenho algumas dúvidas
sobre o catolicismo da nossa gente...
... não o catolicismo no sentido
absoluto do termo, da Reforma. Mas Portugal é um país
mais católico do que outros. Deus existe em mais cabeças
do que em França, por exemplo. Que reacção
é que acha que este livro vai ter nessas cabeças?
Alguns dos grandes escritores portugueses (alguns deles tentaram
reformar o país, é o caso do Eça de Queiroz,
nas "Prosas Bárbaras" e depois na "Relíquia")
que ensaiaram este tema...
... e até o Fernando Pessoa, peguemos no "Guardador
de Rebanhos".
Precisamente. O José Saramago
entra numa tradição de criadores que estabelecem
algumas distâncias em relação à
religião (no caso do Pessoa é uma distanciação
individual e pessoal mas existia; no caso do Eça era
filosófica; no de Herculano foi duro porque a igreja
tocou a rebate...), mas não se alheiam da temática
crística. Que reacções pensa que vão
ser as da Igreja?
A Igreja aprendeu a ser discreta nas suas expressões
de desagrado. Já sabemos que não queima ninguém,
evidentemente. Sou baptizado, é verdade, mas também
foi o único sacramento que me caiu em cima. Tecnicamente
posso ser excomungado é um facto, mas apenas tecnicamente.
Não penso que a Igreja caia no ridículo de me
excomungar, nem espero uma nota do Conselho Episcopal ou do
Patriarcado. E quando digo que não espero, quero dizer
que desejo que não aconteça para que as coisas
não caiam naquilo que pelo menos a mim me pareceria
ridículo. A Igreja não cairá com este
"Evangelho", este "Evangelho" é
um romance, nada mais. Um romance que se atreve muito, um
livro honesto, um livro limpo, que vai com certeza confundir
muita gente, que vai indignar também não pouca
gente, há pessoas que vão sentir-se chocadas
porque fui longe de mais ou que nem sequer me devia ter atrevido.
De Cristo, de Deus e de Maria não se pode fazer nada
que não seja pura edificação - não
é nesse plano que eu me coloco, é evidente,
é noutro. É possível que a Igreja mande
alguns dos seus emissários escrever artigos contra
mim, desqualificando o livro, desqualificando-me a mim, por
exemplo, com ser moral, coisas deste género, pode acontecer
tudo isso. Mas a minha posição, se isso acontecer,
será de perfeita serenidade.
Se alguma coisa eu gostaria que acontecesse era que crentes
e não crentes que lerem este livro dele tirem apenas
esta ideia: é preciso pensar nestas coisas a sério.
Quer do ponto de vista do crente, quer do ponto de vista do
não crente. Pensar nelas a sério, interrogá-las.
Porque não há nada de definitivo neste mundo.
Este planeta onde vivemos é coisa nenhuma. As próprias
religiões têm pouca importância. Têm
importância para nós porque se traduzem em normas
de vida, em ideologia, em cultura. Mas não mais, porque
nós próprios também não temos
muita.
Se a religião é aquilo
que liga, não será você um espírito
religioso?
Sou um espírito profundamente religioso. E digo-lhe,
usando um pouco da minha ironia habitual, que é preciso
ter-se um altíssimo grau de religiosidade para fazer
uma ateu como eu. No sentido etimológico de religião,
tomada como aquilo que liga, o que sinto é essa grande
ligação a tudo, àquilo que está
aqui à mão, que somos nós, ao que nos
rodeia, esta terra pequena que é a nossa terra, a outra
maior, o continente, o globo.
A coisas simples, também, à
pedra...
... sim, sim, sim, as pedras aparecem constantemente nos meus
livros. Se há qualquer coisa que me irrita profundamente
em relação a ter de morrer um dia, é
que vou daqui sem perceber nada disto. E quando digo sem perceber
nada disto... Enfim, perceber isto aqui onde estamos já
é difícil mas - eu sei que vou dizer uma banalidade
terrível - sem perceber o universo. Irrita-me no plano
intelectual ter falhado o momento da explicação
do universo, irrita-me! Ousei este livro e não tenho
nenhum conflito com Deus, não o escrevi para resolver
qualquer crise minha. Resolvi fazê-lo...
Acha que podia acontecer o contrário
agora, quer dizer, o conflito aparecer depois da escrita do
livro?
Não creio. Mas há duas palavras que não
se podem usar: uma é sempre outra é nunca. Não
sei o que me acontecerá. Sei que aconteceu a outros,
súbitas revelações, sou humano, estou
sujeito também a uma coisa dessas. Uma revelação
- pondo entre aspas - já eu tive. Este livro nasceu
de uma ilusão de óptica, ocorrida em Sevilha,
em Maio de 1947, quando eu, atravessando uma rua em direcção
a um quiosque de jornais que se encontrava do outro lado,
e graças aos meus péssimos olhos - porque seu
tivesse uma visão perfeita teria visto só aquilo
que lá estava - li nitidamente: "O Evangelho Segundo
Jesus Cristo". Segui, não ligando muito. Parei
um pouco adiante e disse para mim: "Não posso
ter lido aquilo que li". Voltei atrás para certificar-me
efectivamente de que efectivamente não estava lá
nada: nem Evangelho, nem Jesus, nem Cristo e muito menos em
Português. Depois estas coisas crescem, crescem dentro
de nós, convertem-se em livros, de 450 páginas,
como este.
Em tempos menos positivistas, que
seriam os que o José Saramago descreve no "Evangelho",
teria sido um milagre.
Não tanto um milagre, mas uma revelação.
Indo um pouco mais longe - e parece-me uma boa conclusão
para esta entrevista -, se assim foi então Deus quis
este livro.
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