“Sandokan" - Um herói belo e corajoso
Por RAQUEL RIBEIRO
Terça-feira, 25 de Janeiro de 2005

Nesta aventura de Emílio Salgari, “Sandokan, os Piratas da Malásia”, o escritor italiano volta a criar um herói que, apesar de “mais cruel do que os tigres da selva”, é um homem apaixonado e generoso. Demasiado humano.

A primeira visão é quase assustadora: durante uma tempestade, o navio “Young India” aproxima-se de Mopracem, onde vive “um homem que foi o terror da Malásia”, diz o capitão Mac-Clintock. É o capitão que, durante o naufrágio do seu navio, avista, “com grande terror”, “o vulto imponente de um homem de estatura alta, braços cruzados sobre o peito, impassível ao desencadear da tempestade” — o Tigre da Malásia.

Sandokan é um Tigre, mas não é um tigre. Ou seja, não é um animal, mas um pirata a quem chamam o “Tigre da Malásia” e que foi imortalizado por Salgari em “Sandokan, Os Piratas da Malásia” (que mais tarde deu origem a filmes, jogos de computador e desenhos animados). Ouvem-se histórias assustadoras sobre o Tigre e os seus “discípulos”, os “tigrezinhos” — que são cruéis e sanguinários, vingativos, destruidores, piratas assassinos.

Cedo se percebe que o naufrágio dos primeiros capítulos servia apenas para apresentar Kammamuri, um indiano que tinha uma importante missão a cumprir: salvar o patrão, Tremal-Naik, das mãos do terrível James Brooke, um inglês que capturava corsários. E “devolver- lhe” uma misteriosa mulher, a Virgem do Pagode do Oriente. Estamos em 1856. Kammamuri chega a Mopracem e é abordado por Eanes, um português “de alta estatura, pele branca, feições finas, aristocráticas,olhos azuis e bigode preto que sombreava os lábios sorridentes, o melhor amigo do Tigre da Malásia. Eanes fica impressionado com a beleza da mulher. Mas reconhecea: “Que semelhança! — exclamou, empalidecendo”, escreve Salgari. E quando Kammamuri lhe pergunta se a mulher vem com eles conhecer o Tigre, Eanes responde: “‘Por enquanto não. Porque aquela mulher se parece com…' Interrompeu-se. Uma rápida comoção tinha subitamente alterado as suas feições. Kammamuri apercebeu-se disso.”

O mistério da mulher será depois resolvido, mas é na figura do Tigre que se centra a narrativa de Emílio Salgari. Isto porque Sandokan não é o homem que aparentemente imaginávamos. É um herói, poder- se-á dizê-lo, salgariano. O autor descreve-o assim: “Um homem de pele bronzeada, envergando um riquíssimo trajo à oriental, com vestes de seda vermelha bordada a ouro e grandes botas de pele vermelha e ponta revirada. Não devia ter mais de 34 ou 35 anos. De estatura alta e musculosa, com uma cabeça soberba coberta por uma farta cabeleira, encaracolada, negra, que lhe caía sobre os ombros robustos. A sua testa, o olhar cintilante, os lábios finos, desenhando um sorriso indefinível, a barba magnífica que incutia ao mesmo tempo respeito e temor. No conjunto, adivinhavase que aquele homem possuía a ferocidade de um tigre, a agilidade de um quadrúmano e a força de um gigante.”

Um tigre que sofre por amor

À semelhança do Corsário Negro (cuja aventura também foi publicada na Colecção Geração PÚBLICO), Sandokan é um homem muito belo e corajoso. Apesar de ser “mais cruel do que os tigres da selva”, é um herói com dúvidas e incertezas, imprudente, intempestivo, apaixonado, generoso.

Ao ouvir o nome da Virgem do Pagode, Ada Corishant, o Tigre da Malásia “tinha dado um salto, soltando um grito”. Depois, “abateu- se sobre o tapete com o rosto visivelmente alterado e as mãos crispadas sobre o coração”. E disse: “Amei demasiado aquela mulher… Eanes. Essa recordação tão bruscamente evocada magoou-me mais do que uma bala de carabina que entrasse no meu peito… Mariana, minha pobre Mariana!” Ada Corishant é prima de Mariana, a mulher de Sandokan que já morreu e cuja lembrança deixa o cruel pirata no sofrimento vivo de um homem apaixonado. Mas não é só o leitor que considera improvável a possibilidade de um Tigre se apaixonar — Kammamuri também se mostra surpreendido quando Eanes lhe explica que “o Tigre da Malásia nunca tinha amado até então senão as lutas, os massacres, as tempestades, mas ao ver a rapariga [Mariana] apaixonou-se loucamente.” Resposta do indiano: “Quem? O Tigre? É impossível!” Para o indiano, é impossível um Tigre apaixonar-se. Mas nos romances de Salgari é isso que acontece aos heróis — sempre demasiado humanos.

O Tigre da Malásia sofre, quer vingar a morte da esposa, quer salvar o marido de Ada Corishant, patrão do indiano, quer enfrentar o inimigo James Brooke e não teme ser derrotado por esse aniquilador de piratas. Eanes pede-lhe que se modere, que seja prudente e corajoso. “Não te esqueças que és o Tigre da Malásia.” Sandokan responde: “Certas recordações até para um tigre são tremendas.”




Livros que nos transportam para o plano da aventura da fantasia, da descoberta e da ficção, apelando à imaginação de cada leitor para criar as imagens, as personagens e os cenários.