O melhor dos tempos,
o pior dos tempos
Por José Vítor Malheiros
Quarta-feira, 22 de Dezembro de 2004
Romance histórico e melodrama, “História de Duas Cidades” está cheio de virtude, de vício e abnegação e de peripécias que só se espera encontrar num folhetim.
Não há muitos livros cujo início
seja conhecido por milhões de
pessoas, mas “História de Duas
Cidades” é um deles. Muitas
pessoas que nunca ouviram
o título do livro e que nunca
pegaram sequer numa obra
de Dickens conhecem aquelas
linhas de cor, que ouviram
alguma vez e que nunca mais
puderam esquecer: “It was the
best of times, it was the worst
of times...”. Não há muitos arranques
de romances que nos
transportem com tanta eficácia
para o terreno da narrativa nem
muitos aforismos que tenham
a densidade e o poder evocador
desta fórmula mágica, que faz
dela um ex-líbris da própria
literatura. A única fórmula
comparável pelo seu sortilégio,
ainda que gasta pelo uso,
é o “Era uma vez...” com que
continuamos a encantar as
crianças.
As contradições das
primeiras frases da “História
de Duas Cidades”
compreendem-se melhor
quando se sabe que o pano de
fundo histórico do romance
são os últimos anos do século
XVIII e os acontecimentos violentos
da Revolução Francesa.
Dickens estudou profundamente
a época — dizia ter lido
“centenas de vezes” a história
da Revolução Francesa do seu
amigo Thomas Carlyle — e faz
do Terror um retrato vívido e
terrível onde perpassam com
igual intensidade a sua compreensão
da inevitabilidade
da revolução e a sua violenta
repulsa pela opressão que lhe
dá lugar, mas também a sua
recusa da desumanidade do
Terror.
Violento crítico da sociedade
do seu tempo e dos abusos dos
poderosos e das instituições,
militantemente empenhado
numa maior justiça social durante
toda a sua vida, Dickens
manifesta vivamente em “História
de Duas Cidades” a sua
solidariedade pelos oprimidos
e a sua compreensão pela revolta,
mas exprime com igual
vivacidade a sua repugnância
pelas manifestações dos baixos
instintos da populaça — presididos
pela Santa Guilhotina, luzidia
de sangue fresco —, onde
vislumbra as mesmas sementes
de todas as tiranias.
“História de Duas Cidades” é um romance histórico (um
género que Dickens visitou
esporadicamente), mas é também
um melodrama, cheio de
virtude, vício e abnegação e
das peripécias habituais num
folhetim — que foi a forma da
sua primeira publicação, como
aconteceu com muitos outros
romances de Dickens.
Êxito aos 24 anos
Filho de uma família da classe média arruinada por um pai irresponsável, Charles Dickens (1812-1870) conheceu cedo a pobreza.
Aos doze anos começou
a trabalhar numa fábrica e teve
de abandonar os estudos aos 15.
Tornou-se depois escriturário
num escritório de advogados e
repórter criminal e parlamentar
— o que lhe deixou um
profundo desprezo vitalício
pela exercício da justiça e da
política.
Aos 24 anos, a publicação
do seu primeiro romance, “Pickwick
Papers” (1837), torna-o
famoso quase da noite para o
dia. Seguem-se “Oliver Twist”
(1838), que lhe dará uma fama
eterna e que muitos continuam
a considerar o seu melhor
romance, e muitos outros: “Nicholas
Nickleby” (1839), “The
Old Curiosity Shop” (1841),
“David Copperfield” (1850),
“Hard Times” (“Tempos Difíceis”,
1854), “Great Expectations”
(“Grandes Esperanças”,
1861). “David Copperfield”, de
inspiração autobiográfica,
era o preferido do escritor e
tornar-se-ia a mais popular das
suas obras, mas todos os seus
livros conheceram um enorme
sucesso editorial. Dickens adquiriu
em vida uma fama que
o transformou numa figura tutelar
não só da literatura mas
da vida pública em geral, misto
de autoridade moral e de mestre
“entertainer”. A riqueza e
complexidade da sua obra merece
hoje um estudo crescente,
enquanto a sua capacidade de
encantar e emocionar se mantém
intacta.
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