"À sombra da guilhotina"
Por JOSÉ VÍTOR MALHEIROS
Terça-feira, 21 de Dezembro de 2004
Um romance moral de Charles Dickens sobre o pano de fundo da Revolução Francesa
“História de Duas Cidades” é, como sempre acontece com Charles Dickens, uma história moral. Mas uma história moral envolta na roupagem de um romance histórico que se passa no último quartel do século dezoito, entre duas cidades: Londres e Paris. A acção centrase, mais precisamente, entre dois bairros (Soho e Saint Antoine) onde vivem os dois pólos de protagonistas da história, desdobrando-se em múltiplas cavalgadas e mudas de cavalos, embarques em Dover e travessias da Mancha.
Considerado o menos dickensiano dos seus romances, “História de Duas Cidades” não é uma história de infância desvalida e, principalmente, não possui a veia satírica e a força caricatural de outras obras de Dickens — que impuseram na cultura popular britânica figuras com uma energia que os seus quase dois séculos não fizeram esmorecer. No entanto, não lhe falta a rica galeria de personagens característica do escritor, ainda que desta vez marcada por uma maior gravidade — imposta pelo tema e talvez também pela situação particular da vida do escritor, então atravessando um período especialmente conturbado, prestes a separar-se da sua mulher e envolvido numa problemática relação amorosa com a actriz Ellen Ternan.
“História de Duas Cidades” parte da história de um homem injustamente preso na Bastilha durante 18 anos, não por um crime que tenha cometido ou por erro judiciário mas para garantir o seu silêncio sobre um crime que presenciou. É em redor deste episódio à Conde de Monte Cristo (publicado uma dúzia de anos antes) que se desenvolve a história, centrada na filha do condenado, a jovem e inocente Lucie Manette, e no seu amor pelo aristocrata Charles Darnay, que o destino cruza com as vicissitudes de uma época especialmente cruel: o Terror da Revolução Francesa.
O romance evolui através de segredos de nascimento e trocas de identidade, famílias separadas pelo acaso e reunidas pelo destino, crimes dos pais cujo sangue recai sobre os filhos, coincidências extraordinárias, sacrifícios e abnegações inimagináveis, reencontros inesperados, revelações e reviravoltas caprichosas do destino, conspirações terríveis. E sangue, muito sangue, ou não ocorresse toda a história à sombra guilhotina. Há mãos sujas de sangue que se limpam às camisas, sangue que goteja de facas, e escorre de uma pedra de amolar, que corre cesto da guilhotina, que salpica a multidão, que foge pelo empedrado. Há sósias perfeitos, gémeos assassinos, prantos copiosos, ecos portadores de maus presságios mas também, lado a lado com tudo isto, a possibilidade de uma profunda inocência, de um vivo amor, de uma virtude determinada e de uma total abnegação.
Dickens manipula o leitor através de todos os acontecimentos e das evoluções dos seus personagens, fazendo-o odiar este personagem, admirar o outro, temer um terceiro e surpreender-se com a decisão de outro, sempre com uma mestria sem par, com uma impecável técnica de folhetim que deixa o leitor agarrado até ao fim das mais de quinhentas páginas do romance.
|