Bem-vindos à terra do "nonsense"
de Lewis Carroll

Por ANDRÉIA AZEVEDO SOARES
Quarta-feira, 3 de Novembro de 2004

Na obra “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, é possível mudar o corpo de tamanho, encontrar gatos e lagartas falantes, bem como escutar histórias sem pés nem cabeça. São prodígios de um mundo subterrâneo que nos seduz e espanta ao mesmo tempo.

Alice é uma criança entediada com o mundo que a rodeia. O livro “Alice no País das Maravilhas” começa, aliás, com esta personagem sentada à beira-rio “sem ter nada que fazer” e, por isso mesmo, “farta” da sua própria vida. Quando irrompe à sua frente um coelho branco, vestido com um colete e munido de um relógio de bolso, a menina sente-se mediatamente seduzida a segui-lo. Obsessivo com o tempo, o Coelho Branco corre em direcção à sua toca — uma cavidade que representa a porta de entrada para um universo irreal — e, por impulso, Alice vai atrás dele. À sua espera está um mundo que, apesar de maravilhoso, não traduz a perfeição de um conto de fadas.

O matemático britânico Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898) escreveu “Alice no País das Maravilhas” motivado por uma viagem de barco, no Verão de 1862, com as três irmãs Liddell. Uma delas era Alice (1852-1934), uma figura central na vida de Dodgson, que lhe terá sugerido a escrita de tão maravilhosa narrativa. Assim nasce a história infantil de língua inglesa mais conhecida no mundo. Uma obra publicada em 1865, sob o pseudónimo de Lewis Carroll, que há sucessivas décadas intriga leitores pequenos e adultos. Seis anos depois, veio a lume a sequela “Alice no País dos Espelhos”.

Afinal, o que tem Alice de tão especial? Seria difícil responder nesta página. Numerosos estudos já foram publicados, pertencentes aos mais diferentes domínios — da matemáticaà psicanálise, passando pela semiótica e a teoria literária. Há, contudo, uma constatação quase incontornável: Carroll concebeu uma história não só eficaz no âmbito daquilo que se espera de uma narrativa infantil, mas também uma obra capaz de se desdobrar em subtilezas da língua, da essência humana, das reacções subconscientes, das organizações da sociedade, bem como em questionamentos da moral vigente, das ortodoxias veladas e da própria existência do indivíduo. Este conjunto primoroso de reflexões está enredado na trama do texto, sem lhe retirar frescor ou lhe acrescentar fardos.

Carroll, por vezes, faz da página que seguramos um espelho, obrigando o leitor a um confronto consigo mesmo e com o desejo de um mundo paralelo, uma secção alternativa da existência que porventura nos abrigasse no subterrâneo. “Quem és tu?, disse a Lagarta. Estas palavras não eram lá muito encorajadoras para começar uma conversa. Alice respondeu timidamente: Eu... Senhor, eu agora neste momento nem sei. Sei, pelo menos, o que eu era, quando me levantei esta manhã, mas acho que devo ter mudado várias vezes desde essa altura”, responde Alice à Lagarta, num excerto com óbvias referências à dinâmica da psicologia humana.

Entre o caos e a ordem

Em síntese, a aventura de Alice condensa uma vontade humana de romper com o pré-estabelecido. Após entrar na toca do coelho, a menina cai num poço muito fundo e vai parar num lugar com regras próprias e destituídas de sentido face ao mundo real. Alice deparase com figuras oníricas como uma Rainha de Copas sanguinária, um gato Cheshire que é uma cabeça sem corpo, um Humpty Dumpty, uma lacrimosa Tartaruga Fingida e um chapeleiro maluco. “É que, como estão a ver, tantas coisas fora do normal tinham já acontecido que Alice começava a pensar que poucas eram, na verdade, impossíveis”, escreve Carroll.

Para viver neste espaço recheado de pessoas e situações “nonsense”, Alice está constantemente a reformular conceitos e comportamentos. Sente-se atordoada pela forma como desordenaram o seu mundo prévio, mas ao mesmo tempo tocada pelo assombro próprio do caos. Como resposta ao desconhecido que se lhe apresenta, Alice literalmente aumenta e diminui de tamanho: depois de beber uma poção especial, “não tem agora mais do que 25 centímetros de altura, e a sua cara resplandecia de felicidade ao pensar que atingiria o tamanho ideal para passar pela portinha de entrada para aquele jardim tão lindo”.

O prodígio torna-se desconforto quando a personagem percebe que, mesmo no aparente caos, existe uma ordem intrínseca. Quando a Rainha de Copas se sente contrariada, por exemplo, ordena que aniquilem os indivíduos inoportunos. Apesar da menina saber que se trata de uma ordem corriqueira na vida de vossa majestade, um desejo de evasão domina-a. “Alice principiava-se a sentir-se pouco à vontade; é certo que não tinha tido nenhum briga com a rainha, mas sabia que isso podia acontecer de um momento para o outro. (...) Estava ela à procura de uma maneira de escapar, e magicando se conseguiria ir dali para fora sem que a vissem”, escreve Carroll, sugerindo talvez a vontade que há em todos nós de transbordar os limites do desconhecido, mas, ao mesmo tempo, nos manter protegidos do incerto.

Uma aventura no cinema

Depois de uma curta-metragem realizada em 1903, a história de “Alice no País das Maravilhas” conheceu uma adaptação de relevo três décadas depois, com a actriz Charlotte Henry na pele da protagonista. Em 1951, o filme animado da Walt Disney tornou-se na sua versão mais célebre, sendo nomeado para o Leão de Ouro do Festival de Veneza e para o Óscar de Melhor Banda sonora. Hoje, é talvez a obra mais representativa do universo mágico de Lewis Carroll.
Em 1999, um luxuoso telefilme regressou ao “País das Maravilhas”, contando no elenco com alguns actores famosos como Whoopi Goldberg, Christopher Lloyd e Ben Kingsley.

 



Livros que nos transportam para o plano da aventura da fantasia, da descoberta e da ficção, apelando à imaginação de cada leitor para criar as imagens, as personagens e os cenários.

PERFIL

Quem é Lewis Carroll?

Charles Lutwidge Dodgson, conhecido nas suas obras literárias como Lewis Carroll, nasceu em Inglaterra em 1832 e, como romancista, ficou famoso precisamente pelo sucesso de “Alice no País das Maravilhas” (publicado em 1865). A musa inspiradora para esta obra é, claro está, a pequena Alice Liddell, que se tornou uma obsessão para Carroll — o que contribui para a sua imagem de pedófilo latente, fama contrariada por parte dos seus biógrafos e entusiastas. Apesar do gosto pela escrita, a sua principal ocupação foi a matemática e a lógica, sendo professor em Oxford. Amante também da fotografia, publicou várias obras de interesse científico, usando o nome verdadeiro. Já no vasto território da ficção, os seus relatos de falsa aparência infantil estão próximos do absurdo. Escreveu também “Alice no País dos Espelhos” (uma continuação da obra original, lançada em 1872) e “Sylvie e Bruno”. O gosto pela poesia acabou também por dar os seus frutos: a obra “Fantasmagoria e Outros Poemas” tornou-se numa colecção preciosa que alternava 13 poemas sérios com outros humorísticos. Faleceu em 1898, vítima de bronquite.