"Descubra pela mão de Alice os prodígios que se passam abaixo da terra" de Lewis Carroll.
Por
ANDRÉIA AZEVEDO SOARES
Terça-feira, 02 de Novembro de 2004
“Alice no País das Maravilhas”, a obra emblemática de Lewis Carroll, apresenta-nos personagens tão insólitas como uma sanguinária Rainha de Copas ou um apressado Coelho Branco
Oxford, Verão de 1862. Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898) passeia de barco com três crianças, as irmãs Liddell. Durante a viagem, terlhes-á contado histórias extraordinárias. Alice, uma das meninas que o acompanhavam na embarcação, sugere a Dodgson a escrita de tão insólitas aventuras. “Assim nasceu a história do País das maravilhas:/ Assim, um por um, lentamente,/ se desfiaram seus estranhos eventos –/ E agora a história acabou,/ E remamos para casa alegremente/ Debaixo do sol que baixou”, explica Lewis Carroll, numa tradução de Margarida Vale de Gato. Lewis Carroll é o pseudónimo sob o qual o matemático Dodgson escreveu a história infantil de língua inglesa mais badalada do planeta. Lido e estudado até hoje por adultos e crianças, “Alice no País das Maravilhas” apresenta-nos um mundo destituído de lógica – e por isso tão fascinante –, no qual a personagem Alice se envolve com personagens vindas de um plano aparentemente onírico. Temos um gato Cheshire, cuja aparição é intermitente, mostrando apenas a sua imensa cabeça sem corpo. Temos uma Rainha de Copas, uma figura majestática mas pouco criativa na hora de solucionar os problemas – “só sabia uma maneira de resolver todas as dificuldades, grandes ou pequenas. ‘Cortem-lhe a cabeça!', disse ela, sem sequer olhar à sua volta”. Temos ainda o Humpty Dumpty, a tartaruga falsa e o chapeleiro maluco, isso sem falar no apressado Coelho Branco que introduz Alice, mostrando-lhe o caminho de um poço sem fim, num reino de prodígios abaixo da terra.
A musa inspiradora para esta obra é, claro está, Alice Liddell (1852-1934). A menina tornou-se uma certa obsessão para Carroll – o que contribui para a sua imagem de pedófilo latente, fama contrariada por parte dos seus biógrafos e entusiastas –, tendo sido fotografada vezes sem conta pelo autor, que dominava como poucos a arte dos sais de prata. Carroll foi amigo da rapariga durante dez anos, mas dessa relação não existem certezas inabaláveis: o irmão de Carroll ateou fogo, após a morte do autor, à maior parte dos seus apontamentos. Quatro dos seus treze diários desapareceram,
sendo certo que mesmo aos textos sobreviventes foram subtraídas algumas páginas.
Dizem que, depois da Bíblia e de Shakespeare, é a referência textual mais citada do mundo. “Alice” até hoje seduz gerações de leitores e críticos, sobretudo porque o seu substrato literário ultrapassa os limites daquilo que julgamos ser uma narrativa infantil. A obra mantém-se intacta no seu frescor não só porque congrega um imaginário de assombro – uma criança que muda de tamanho ou que quase se afoga nas suas próprias lágrimas, por exemplo –, mas também porque possui elementos sofisticados que se prestam a abordagens pelo viés da psicanálise, da teoria literária ou da semiótica.
É o caso dos intrincados jogos de palavras que fazem suar os tradutores, da inovadora utilização da mancha gráfica – um excerto impresso com a forma de um rabo de gato, por exemplo –, ou do questionamento da identidade. “Quem sou eu? Digam-mo primeiro, e então, se eu gostar de ser essa pessoa, volto lá para cima; se não, ficarei aqui até ser outra pessoa qualquer...”, escreveu Carroll. Quem lê com olhos ingénuos uma indagação como esta?
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