Viagem ao ano 802.701
Por JOSÉ VÍTOR MALHEIRO
Terça-feira, 29 de Setembro de 2004

O que faz de "A Máquina do Tempo" um marco é o facto de esta ser a primeira viagem no tempo decidida pela vontade do homem.

A primeira vez que "A Máquina do Tempo", de H.G. Wells, apareceu à luz do dia foi sob a forma de folhetim, no início de 1895, na publicação "The New Review", uma iniciativa do poeta William Ernest Henley, a cuja actividade de editor se deve também o lançamento de autores como Thomas Hardy, George Bernard Shaw ou Rudyard Kipling.

Wells era então um modestíssimo professor de ciências, já com um livro publicado (um manual de biologia, em 1893), mas empenhado em encontrar a fama e em libertar-se de uma pobreza que o tinha perseguido desde a infância. Tinha trabalhado arduamente no livro, ao longo de sete anos, e as notas e rascunhos que se conhecem provam como labutou até encontrar o tom justo, o ritmo certo, como se tivesse consciência de que este livro era uma oportunidade que não podia falhar. E não falhou. Se o folhetim atraiu imediatamente as atenções do público, a sua publicação em livro atirou-o para a fama de um dia para o outro.

Se hoje as viagens no tempo se tornaram banais na ficção e até um fenómeno comum na ficção científica, fantástica ou especulativa, a verdade é que no tempo de Wells elas não o eram. Mas o papel do livro na história da literatura e da ciência não provém da duvidosa glória de ter sido um dos primeiros a abordar o tema. Antes dele, outras obras de relevo o tinham feito, como "Rip van Winckle", de Washingtron Irving (1819), o famoso "A Christmas Carol" ("Conto de Natal"), de Charles Dickens (1843), ou "A Connecticut Yankee in King Arthur's Court" ("Um Americano na Corte do Rei Artur"), de Mark Twain (1889).

Uma viagem pensada pelo homem

O que faz de "A Máquina do Tempo" um marco é o facto de, enquanto as anteriores visitas ao passado ou ao futuro são involuntárias ou regidas por forças sobrenaturais, esta ser a primeira viagem no tempo decidida pela vontade do homem e conseguida através da razão, da ciência e da tecnologia. A máquina do Viajante no Tempo, feita de latão, ébano, marfim e quartzo e accionada por duas pequenas alavancas, foi construída por um cientista diletante, é o primeiro veículo da história construído cientificamente para explorar o tempo e nasce da ideia relativista do espaço-tempo, segundo a qual o tempo é apenas mais uma dimensão (diferente das espaciais mas uma dimensão), por onde se pode evoluir, da mesma maneira que, com os instrumentos adequados, o homem pode explorar a dimensão vertical e subir aos céus.

As primeiras páginas de "A Máquina do Tempo" são aliás uma ligeira introdução a estas questões, onde o Viajante no Tempo explica a "geometria de quatro dimensões" - ainda que Wells não se atreva a especular sobre a forma de propulsão do aparelho através das eras.

Curiosamente, mais do que sobre viagens do tempo, "A Máquina do Tempo" é sobre a evolução. De facto, Wells não aborda no livro nenhuma das problemáticas típicas da viagem no tempo (os futuros possíveis que se bifurcam ou as incoerências do tipo "matar o pai antes de nós nascermos") mas discorre profusamente sobre a evolução do homem. Não é por acaso que o futuro que o "Viajante no Tempo" visita é tão distante - o ano 802.701. Wells precisava de um período de tempo suficientemente longo para poder justificar alterações profundas na própria espécie humana e não uma mera evolução nos artefactos ou na organização social, como acontece com a maioria das obras de ficção científica.

Wells, que era um fervoroso crente no progresso social, na ciência e um adepto do evolucionismo (ou não tivesse sido aluno na Normal School of Science do famoso biólogo darwinista T.H. Huxley), aborda na "Máquina do Tempo" precisamente essas temáticas. Se a evolução das espécies é o resultado da adaptação ao ambiente, da selecção natural induzida pelos desafios que o habitat nos coloca, e se considerarmos que o progresso da ciência conseguirá um dia eliminar todos os perigos que se colocam ao homem, qual poderá ser então o resultado da evolução humana? Que tipo de homem poderá surgir após milénios sem catástrofes, sem doenças, sem guerras, sem violência, sem dificuldades? Que tipo de sociedade poderá surgir?

Poder-se-ia pensar que Wells, fiel aos seus princípios positivos e igualitários, quereria retratar o paraíso futuro proporcionado pelo progresso científico, o regresso à Idade do Ouro, à prosperidade, à inocência, mas o que nos mostra é algo diferente.

O futuro que Wells propõe leva a um extremo nunca antes imaginado a dualidade da sociedade vitoriana, com uma classe trabalhadora subterrânea e uma classe ociosa à superfície que deram origem a duas espécies diferentes e a um mundo estéril e desumano, que não permite nenhuma esperança.

Mas Wells não se fica por aqui e, num "tour de force", prossegue a sua viagem pelo futuro até nos deixar testemunhar o fim da vida humana na terra e mesmo a agonia do planeta, apresentando-nos um cenário desolado e glacial onde a solidão, a fragilidade e a futilidade do destino humano ganham uma esmagadora e inédita dimensão cósmica.

Romance de estrutura simples, quase um conto, escrito como um relato oral despejado de um fôlego, sem intervalo, "A Máquina do Tempo" é mais do que a história de um brinquedo engenhoso. É um livro que nos coloca perante o destino do homem.

O livro poderia ser profundamente pessimista mas não é, porque o Viajante do Tempo regressa para contar as suas aventuras e pode mesmo voltar a montar o seu aparelho, talvez para mudar o curso da História, talvez para mudar apenas o destino de um ser no ano 802.701, provando que há algo de eterno que vale a pena tentar salvar na espécie humana e que essa pulsão já vale a vida.

 



Livros que nos transportam para o plano da aventura da fantasia, da descoberta e da ficção, apelando à imaginação de cada leitor para criar as imagens, as personagens e os cenários.