De Selvagem a Bom Rebelde
Por RAQUEL RIBEIRO
Quarta-feira, 22 de Setembro de 2004
Ao contrário dos super-heróis, o Corsário Negro, de Emilio Salgari, tem angústias como um apaixonado. Herói fraco? Nada disso - são estas características que o tornam uma personagem interessante.
Há qualquer coisa de diferente neste herói, o Corsário Negro, temerário pirata do golfo do México que se quer vingar do governador de Maracaíbo, Wan Guld, que lhe matou os irmãos - os corsários Vermelho e Verde.
Porquê diferente? Porque, ao contrário dos super-heróis, este pirata impiedoso é demasiado humano - tem dúvidas e angústias e, se antes gritava aos céus pela vingança sangrenta, torna-se, de repente, num "gentil-homem", nobre apaixonado de olhar perdido no horizonte.
Herói fraco? Não. O autor italiano Emilio Salgari (1862-1911) transformou um provável "selvagem" num "bom rebelde".
Os diálogos com a donzela - "resgatada" ou "feita refém" (depende do ponto de vista) pelo navio "Relâmpago", de que o Corsário é comandante - estão cheios de segundas intenções. Por exemplo, diz o pirata: "É necessário que eu saiba quem sois, se quereis readquirir a liberdade." Ao que a donzela responde: "A liberdade!... Ah, sim! Esquecia-me que sou vossa prisioneira." Há aqui qualquer coisa de sub-reptício...
Desde o princípio se percebe que este pirata não é um malandro qualquer. "Vestia completamente de preto e com uma elegância pouco habitual entre os corsários do grande golfo do México (...), envergava um belo casaco de seda preta, adornado de alamares de cor igual", escreve Salgari, na primeira aparição do pirata no livro.
Mas há já um prenúncio de morte - o seu aspecto tinha "o que quer que fosse de fúnebre", "belas feições" mas "um não sei quê de melancólico". Era um nobre: Cavaleiro Emílio da Rocha Negra, senhor de Valpenta e Vintemilhas.
Talvez por tudo isto, o leitor quase se esquece do governador e da vingança, para se centrar nessa história de amor feita de coisas não ditas.
"Que dizes daquela donzela?", pergunta o corsário ao seu imediato. "Que é uma das mais belas criaturas que se têm visto nestes mares das Grandes Antilhas", responde. "Não vos faria medo?" / "Quem? Aquela dama?!... por certo que não." / "Pois a mim, faz", responde o comandante.
O pirata explica que uma cigana lhe lera a sina e lhe dissera que a primeira mulher que amasse "seria fatal". Foi a mesma cigana que previu a morte dos irmãos. Não se percebe (ainda) por que razão a donzela é (será?) fatal, mas tudo se complica quando, após a tempestade, o corsário lhe pergunta se ela conhece o governador de Maracaíbo. "Estais pálida e agitada", diz. "Mas, porquê essa pergunta?" E se ela é parente de Wan Guld? Nada feito - para o corsário é demasiado tarde porque, diz, a ama "loucamente".
Entre o furor dos combates e o humor das personagens, as forças ocultas da natureza - saídas de um realismo mágico digno de Alejo Carpentier - da espada que rasga a multidão ao afundamento solene dos corpos dos piratas, "O Corsário Negro" é um romance gracioso e cheio de aventuras.
Um dia, um admirador disse a Salgari: "O senhor é o Júlio Verne italiano." Salgari respondeu: "Oh, não! Verne ama os engenheiros, eu amo os heróis!" É verdade. E porque os heróis não morrem nunca e as lendas perduram, Salgari - que ironicamente se suicidou em 1911, por amor - dedicou-se a criar séries, como a do popular personagem Sandokan.
No final, Salgari relembra: "A luta implacável que o Corsário Negro vai travar contra o governador de Maracaíbo, duque de Wan Guld, terá lugar no volume 'O Juramento do Corsário Negro'." Ou seja, a continuação deste livro. "Não morrerei sem primeiro ter exterminado esse Wan Guld e toda a sua família, e reduzido a cinzas a cidade que ele governa. Maracaíbo!, tens-me sido fatal, mas eu ser-te-ei mais fatal a ti", disse o corsário. Só mais tarde se saberá se a promessa será ou não cumprida.
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