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MEU DUPLO

1

A edição que circula de mim pelas ruas
Foi feita sem o meu consentimento.
Existe a meu lado um duplo
Que possui um enorme poder.
Ele imprimiu esta edição da minha vida
Que todo o mundo lê e comenta.

Quando eu morrer, a água dos mares
Dissolverá a tinta negra do meu corpo,
Destruindo esta edição dos meus pensamentos, dos meus sonhos, dos
meus amores
Feita à minha revelia!

2

O meu duplo sonha de dia e age durante a noite.
O meu duplo arrasta correntes nos pés.
Mancha todas as coisas inocentes que vê e toca.
Ele conspira contra mim.
Desmonta todos os meus actos um por um e sorri.
O meu duplo com uma única palavra
Reverte todos os objectos do mundo ao negativo do FIAT.
Destrói com um sopro
O trabalho formidável que eu tenho de diminuir o pecado original.
Quando eu me matar o meu duplo morrerá — e eu nascerei.

3

Eu tenho pena de mim e do meu duplo
Que entrava meus passos para o bem
Que estrangula dentro de mim a imagem divina.
Tenho pena do meu corpo cativo em terra ingrata,
Tenho pena dos meus pais, que sacrificaram uma existência inteira
Pelo prazer de uma noite.
Tenho pena do meu cérebro que comanda
E da minha mão que escreve poemas amargurados.
Tenho pena do meu coração que estourou de tanto ter pena,
Do meu coração pisado pelo meu duplo.
Tenho pena do meu sexo que não é independente,
Que é ligado ao meu coração e ao meu cérebro.
Eu tenho pena desta mulher tirânica
Que me ajuda a ampliar o meu duplo.
Tenho pena dos poetas futuros
Que se integrarão na comunidade dos homens
mas que nos momentos da dúvida angustiante
Só terão como resposta o silêncio divino...

4

Ó meu duplo, porque me separas da verdade?
Porque me sopras ao ouvido a palavra terrível,
Porque me impeles a descer até ao lago
Onde pararam as formas de vida para sempre?...
Porque insinuas que o sorriso das crianças já traz a corrupção,
Que toda esta ternura é inútil
Que os homens usarão continuamente a espada contra seus irmãos
Que a minha Poesia aumenta o desconsolo em torno de mim?
Ó meu duplo, porque a todo instante eclipsas a Cruz aos meus olhos?
Ó meu duplo, porque murmuras sutilmente ao meu ouvido
Que Deus não está em mim porque está fora do mal, do tédio e da dúvida?
Porque atiras um pano negro na estrela da manhã,
Porque opões diante do meu espírito
A temporária Berenice à Mulher eterna?
Ó meu duplo — ó meu irmão — ó Caim — eu preciso te matar!

MURILO MENDES
in "A Poesioa em Pânico"
Cooperativa Cultural Guanabara, 1938 (esgotado)
104 páginas

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