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CANTATA DO MAU MARINHEIRO

Em Calicut, uma vez,
o grande Vasco da Gama
pôs-me a ferros no porão.
Não por pena de traição,
mas por eu passar na cama
trinta dias cada mês.

Se retroava a bombarda
para acossar a moirisma
— a cambulhada casmurra —,
eu dedilhava a bandurra,
recantando a minha cisma
ao anjo da minha guarda.

Quando o Santelmo chispava
nos topes de popa e proa,
agoiros de calmaria,
eu ao bailique pedia
os caminhos de Lisboa
e o corpo da minha escrava.

Quando a água escasseou,
a bolacha criou bicho
e o vinho já ia azedo,
eu nunca tremi de medo:
fiquei-me em santo de nicho
que a si mesmo se salvou.

Mas se o mar fazia espuma,
o vento cuspia pragas
e a nau parecia um trambolho,
já, do sono abria um olho,
piscava-o de manso às vagas
— que, enfim, a vida é só uma!

(Sei que a morte não me quer
enquanto andar embarcado,
só pecando em pensamento.
Porém sou primo do vento
e, no seu corpo salgado,
o mar é minha mulher...)

Não fui herói como os mais,
mas o almirante do rei
acabou por perdoar.
É que eu tinha de ficar
só nos trabalhos que sei
pra lhe dar estes sinais!

(A nau voltou a Belém,
e eu, felizmente, estou bem!).

ANTÓNIO DE SOUSA
in "Poesia Portuguesa Contemporânea"
Secretaria de Estado da Cultura, 1977 (esgotado)
74 páginas

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