Problemas Começam no Acesso ao Sistema
Por Catarina Gomes
Domingo, 9de Setembro de 2001


Domingo, 09 de Setembro de 2001 O desenho de um diagnóstico da justiça não se limita ao momento em que o processo entra no tribunal. Para muitos, os problemas começam antes, no acesso à justiça, passam pelo tribunal, e continuam depois, quando a decisão foi proferida e já só falta aplicá-la


Antes
Entre um potencial conflito jurídico e a corajosa decisão de avançar para tribunal surgem na cabeça do cidadão algumas ideias. A lentidão e o temor dos tribunais estão no topo das razões que fazem da justiça institucional a derradeira solução para um problema, referia o estudo "Os tribunais portugueses nas sociedades contemporâneas, o caso português", coordenado por Boaventura Sousa Santos.

Mas o primeiro problema que se coloca é mesmo a acessibilidade ao sistema judicial: na teoria, o tribunal assegura a igualdade de acesso à justiça nomeando gratuitamente um advogado ao cidadão sem recursos. Mas será a desigualdade social e económica suprida pelo direito ao apoio judiciário? A resposta é negativa.

É sintomático que num inquérito recente feito pela Ordem dos Advogados (OA) aos presos preventivos, dez por cento dos reclusos digam não saber o nome do seu advogado oficioso, o que espelha o desacompanhamento desta população mais fragilizada na sua passagem pela justiça.

Apesar dos esforços do actual executivo de retirar o apoio judiciário da tutela dos serviços do Ministério da Justiça - desburocratizando-o e tornando-o numa prestação social do sistema de solidariedade e segurança social - o relatório de Julho do Observatório Permanente da Justiça (OPJ) conclui que a transferência de serviços tem "impacto potencial positivo", mas contém "problemas de aplicação a corrigir".

O Observatório, presidido pelo sociólogo Boaventura Sousa Santos, conclui que a complexidade do formulário que o cidadão é obrigado a preencher "pode impedir o interessado de apresentar o requerimento". Notou-se também alguma falta de preparação dos funcionários da segurança social que, em alguns postos de atendimento, encaminharam as pessoas directamente para um advogado, quando a sua função é aferir se o requerente é carenciado e servir de mediador na nomeação do advogado oficioso.

Embora a resposta se tenha tornado mais rápida, a coordenação entre a segurança social, a OA e os tribunais "não é efectuada de forma eficiente", lê-se. Quando a OA recebe a decisão de nomeação de patrono por parte da segurança social, demora na sua nomeação e, por consequência, na comunicação ao tribunal e à própria pessoa.

Por outro lado, embora as tabelas de honorários dos advogados tenham sido recentemente actualizadas, continuam a ser pagos em atraso e considerados baixos pela classe, o que significa menos empenho e investimento de tempo nas defesas oficiosas.

Assim, é possível dizer que vai uma longa distância entre quem tem dinheiro para pagar a um advogado de renome e quem se dirige a "guichet" da segurança social à espera de que lhe nomeiem um advogado, mal pago, distância essa que se pode traduzir numa decisão judicial favorável ou desfavorável.

Durante
Partindo do pressuposto que os obstáculos iniciais foram ultrapassados, mal o seu processo entra no tribunal, o cidadão vê-se mergulhado num mundo que não compreende e que lhe vai roubar muita da sua disponibilidade durante um período inestimável de tempo.

No centro da chamada "crise" da justiça está a desadequação entre a oferta de serviços, ajustada a tempos em que a demanda era bem menor, e a procura crescente do cidadão. Números provisórios, referentes a 2000 (fornecidos pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento) dão conta de um agravamento da pendência e da morosidade processual.

Os processos pendentes (cíveis e penais na fase de julgamento) aumentaram 28239 entre 1 de Janeiro de 1999 e a mesma data em 2000 (ver quadro). Este estrangulamento explica o aumento, ou a estagnação, da duração média dos vários tipos de processos. A título de exemplo, em 2000, as acções cíveis passaram a demorar, em média, 18 meses em vez dos 17 do ano anterior; os processos tutelares aumentaram de 14 para 16 meses de duração. Noutros casos, como nos divórcios e separações judiciais de pessoas e bens e dos processo crime na fase de julgamento houve uma permanência da duração, doze meses e 17 meses, respectivamente.

Depois
Descontada a possibilidade dos recursos e obtida a decisão, mesmo que seja favorável, a via sacra judicial pode não terminar. O caso das acções de cobrança de dívidas é disso significativo. Nesta área, cujo projecto de reforma está em discussão, um dos pontos de bloqueio diz precisamente respeito à efectiva execução das decisões (acção executiva).

Situação: um credor reclama em tribunal o pagamento de uma dívida, obtem uma sentença condenatória, mas o devedor não paga. A partir desse momento, vai enfrentar uma nova batalha judicial que pode demorar períodos que podem ir dos dois anos aos cinco anos. De acordo com uma simulação realizada num relatório do Observatório sobre a questão, uma acção deste tipo, intentada em Janeiro de 2001, terá o seu fim em Janeiro de 2003: 66 dias para os actos dos juízes, 171 dias para as partes (através dos seus advogados) e 421 dias passados nas secções dos tribunais. O pior, constata o estudo, é que cerca de 50 por cento das acções executivas fracassam.

Feitas as contas, não será por acaso que a incapacidade da justiça portuguesa decidir em prazo razoável é a razão de queixa que, em 80 por cento dos casos, levou à condenação do Estado português junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o que até Janeiro deste ano tinha acontecido 183 vezes.

 

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