A Liberalização Social Permitiu o Crescimento
de Consumos

Sábado, 8 de Setembro de 2001


Até 1996, os governos e a opinião pública estiveram distraídos para as alterações no consumo de bebidas alcoólicas, as quais passaram a ser usadas em formas rapidamente intoxicantes. Quem o diz é Álvaro de Carvalho, presidente da comissão de acompanhamento do Plano de Acção de Combate ao Alcoolismo e director do departamento de saúde mental do Hospital de São Francisco Xavier, que, em resposta às perguntas que lhe foram enviadas pelo PÚBLICO, garante que o combate ao alcoolismo não pretende pôr em causa a produção agrícola nacional.

PÚBLICO - O que explica historicamente e culturalmente o consumo excessivo de álcool em Portugal? Em que tradições (políticas, religiosas, económicas) poderemos encontrar as razões para esse fenómeno?

ÁLVARO DE CARVALHO - Remotamente, podemos encontrar explicações na localização geográfica e na religião: como todos os países do Sul da Europa e da orla mediterrânica, Portugal é um cultivador tradicional de vinha, o que foi sendo um factor económico significativo, quer em termos agrícolas estritos quer de riqueza nacional; a cristianização, uma vez que a cultura islâmica (entretanto contida na outra vertente mediterrânica) interdita, como se sabe, o consumo de bebidas alcoólicas.

Mais recentemente, pode considerar-se dois momentos sequenciais. Durante o salazarismo foi propalado que "beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses", sendo óbvio que, a par do analfabetismo e de baixos salários, com repressão do sindicalismo, etilizar a população trabalhadora era uma boa estratégia. Por isso a jorna dos camponeses tinha uma vertente financeira e outra de volume de vinho. Recordo que nos anos 60/70 se dizia que "o vinho é a benzodiazepina (então aparecida como tranquilizante e considerada inócua) dos pobres". Após o 25 de Abril, a liberalização social, a alteração das estruturas familiar e económica, a par de outras, foram reduzindo os interditos sociais, que, ao não terem sido, em particular neste caso, acompanhados de uma informação eficaz e objectiva sobre os riscos, permitiu o crescimento de consumos.

Reconhece virtudes no álcool enquanto elemento de integração social, que incita à conversa e ao convívio, enquanto património gastronómico?

É indiscutível, melhor, foi indiscutível, uma vez que, na actualidade, o que se verifica, sobretudo entre os mais jovens e em idades cada vez mais precoces, é que os consumos de bebidas alcoólicas deixaram de ter essa contextualização e passaram a ser utilizados em formas rapidamente intoxicantes, quer de um trago (as destiladas ou espirituosas, em particular sob a forma de "shots", quando não de tubos de ensaio), quer em volumes impressionantes (a cerveja a copo, mais barata e muitas vezes vendida "ao metro"). Para além de um copo de cerveja ter a mesma riqueza alcoólica que um cálice de destilada ou espirituosa e de que um copo de vinho, como o álcool (etílico ou etanol) reduz o controlo mental (e motor), sendo que a possibilidade de comportamentos de risco (violentos, de condução motorizada, sexuais) fica obviamente amplificada. Por isso a etilização aguda intencional é motivo comprovado, internacionalmente, de altos índices de morbilidade e de mortalidade, sobretudo entre os jovens que, por motivos biológicos, apenas adquirem a capacidade de metabolização total para o álcool depois dos 18 anos, se não dos 21, limitação que no sexo feminino se prolonga até à menopausa.

A nível dos adultos, entre nós os problemas colocam-se, em especial, com o comprometimento de alcoolemias elevadas em muitos acidentes de viação e de trabalho, em que internacionalmente ocupamos lugares cimeiros.

Por que há uma desproporção de meios afectados ao tratamento do vício da droga relativamente à maior toxicodependência dos portugueses que é o alcoolismo?

Suponho que por, em termos de opinião pública, a chamada "droga", ao ter sido motivo de preocupação social (justificada, uma vez que induz dependência e tolerância com muito maior rapidez, com consequente desorganização pessoal, familiar, social e risco de atitudes anti-sociais) preocupou grandemente os cidadãos e levou os políticos a procurarem tirar dividendos. Neste contexto, parece ter havido uma "distracção", até 1996, dos governos e da opinião pública, para o que se modificou com o consumo de bebidas alcoólicas, quer nos níveis quer nos padrões, enquanto persistiram falsos preconceitos, fortemente arreigados a nível cultural, sobre o vinho em particular - "faz crescer", "dá saúde", "melhora a qualidade do leite materno", "é inócuo na gravidez", "enrija os ossos", "mata a sede", "alimenta", "dá virilidade", "faz bem ao coração e à circulação", sem esquecer que "o vinho é o sangue de Cristo".

Terá o Governo coragem para enfrentar os interesses económicos do sector da venda e produção de bebidas alcoólicas?

A questão terá que ser colocada às entidades competentes, mas não posso deixar de salientar que o Plano de Acção contra o Alcoolismo foi de iniciativa governamental (Resolução do Conselho de Ministros n.º 40/99, de 8 de Maio), tendo sido assumido na estratégia do Ministério da Saúde desde 1996 como um dos aspectos prioritários em termos de saúde pública.

De forma alguma o plano pretende pôr em causa a produção agrícola nacional, até porque o vinho não tem apresentado aumentos de consumo e é a bebida alcoólica menos procurada pelos grupos de maior susceptibilidade, em particular pelos jovens. É de salientar que a Itália, sendo o segundo maior produtor mundial de vinho (Portugal é o sexto, com volume 10 vezes inferior), teve em 1999 consumos por habitante ligeiramente inferiores aos nossos (51,5/51,7 litros) e dos mais baixos de bebidas alcoólicas "per capita" da União Europeia, com 7,3 litros de etanol, é o antepenúltimo país, embora também do Sul e mediterrânico, sendo Portugal o terceiro com 11 litros.

 

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