Álcool, a Maior Toxicodependência
Por Ricardo Dias Felner
Sexta- feira, 7de Setembro de 2001


O alcoolismo é o vício com mais custos económicos e sociais em Portugal, mas o investimento estatal tem sido quase todo canalizado para a prevenção e tratamento do vício da droga

Rodrigo, português de Portimão, nunca mais esquecerá uma aula de Estatística da União Europeia, a que assistiu na Universidade de Joensuu, na Finlândia, já lá vão três anos. À medida que o professor revelava os números dos salários mínimos, das pensões de reforma, da eficácia da saúde, do nível de vida, os colegas - alemães, ingleses, holandeses - iam repartindo felicitações, deixando-o isolado, naquela competição restrita à elite do Norte. A dada altura, contudo, "Portugal" ecoou com vigor inusitado. Rodrigo levantou a cabeça num repente e olhou a tabela projectada na tela: "Casos de Cirrose Hepática Alcoólica na União Europeia". A turma focou-o automaticamente e ele não se conteve, quebrando a disciplina num gesto vitorioso de braços levantados, para aplauso geral.

O episódio passou-se em 1998, ano em que Portugal foi medalha de prata no Campeonato do Mundo dos Bêbedos, logo a seguir ao Luxemburgo - e revela duas características nucleares do fenómeno do alcoolismo. Por um lado, o dado factual - terrível - relativo às doenças mortais associadas ao consumo. Por outro, o orgulho cultural, que todas as maleitas descura, de um povo para quem a suprema comédia é o Vasco Santana na cena do bêbedo e do candeeiro.

Em 1999, Portugal desceu para o terceiro lugar entre os maiores consumidores mundiais e europeus. Aliás, os 12 maiores consumidores mundiais são todos países europeus.

A inércia dos sucessivos governos democráticos ao longo de mais de duas décadas parece só encontrar justificação no próprio desmerecimento que o cidadão-eleitor - com uma probabilidade estatística elevada de ser um bebedor excessivo - concede ao alcoolismo. Os números da doença, veiculados repetidamente na imprensa - facultados por organizações nacionais e internacionais, ligadas a produtores e a consumidores, a entidades oficiais e a associações humanitárias - revelam um cenário negro, mas ninguém parece reconhecer gravidade.

Os últimos estudos contabilizam 1 milhão e 800 mil portugueses consumidores excessivos, 800 mil dos quais bebedores dependentes. De acordo com o Eurocare, o custo económico dos problemas relacionados com o álcool representa 5 a 6 por cento do Produto Nacional Bruto - mais de mil milhões de contos, no caso português. Incluem-se aí, nomeadamente, os gastos com os acidentes rodoviários e com os acidentes de trabalho (40 por cento e 25 por cento dos quais, respectivamente, estão relacionados com o consumo), bem como com as baixas médicas e a improdutividade (a Organização Mundial de Saúde estima que 70 por cento dos alcoólicos estão enquadrados profissionalmente).

A cronologia política é escassa e avulsa. Em meados da década de 1980, há sinais tímidos de uma resposta estatal, através da criação dos três Centros Regionais de Alcoologia (Norte, Centro e Sul), ainda hoje únicas estruturas criadas de origem para combater o flagelo. Em 1995, Portugal subscreve a Carta Europeia sobre o Álcool - uma iniciativa da OMS - mas não assume qualquer das dez estratégias aí anunciadas.

A primeira vez que são definidas metas precisas acontece já em 1998, através da então ministra da Saúde, Maria de Belém. Nas orientações para esse ano - inseridas no plano "Saúde em Portugal, uma estratégia para o virar do Século" (1998-2002) -, o Governo propõe-se baixar, em quatro anos, o consumo anual de álcool para menos de dez litros "per capita", e reduzir em dez por cento os acidentes laborais e de tráfego relacionados com a bebida, as admissões nas urgências e os internamentos hospitalares.

Plano contra Alcoolismo não sai do papel
Em Maio de 1999, foi criada um comissão interministerial incumbida de apresentar um Plano de Acção de Luta contra o Alcoolismo (PALA), um instrumento considerado fundamental. Entre outras medidas igualmente ambiciosas, os técnicos propuseram: a taxação de um por cento sobre o preço de cada bebida (à semelhança do tabaco), a reverter para o tratamento de doenças relacionadas com o consumo; a definição de uma idade mínima legal para a aquisição e o consumo; o alargamento do período de proibição de publicidade na televisão e na rádio. Até à data, porém, nenhuma destas disposições foi aprovada em Conselho de Ministros, o que tem gerado críticas por parte quer do PSD, quer do PCP.

Curiosamente, a única iniciativa legislativa assinalável, pelo seu radicalismo, do Governo de Guterres não estava no Plano. Num acto de grande efeito mediático, foi anunciada, já este ano, a redução do valor máximo de alcoolemia, permitido aos automobilistas comuns, para 0,2 g/l. "Por motivos técnicos" - alegou o Ministério da Administração Interna -, também a sua aprovação seria todavia adiada. Ao que o PÚBLICO apurou, os alcoolímetros que equipam as Brigadas de Trânsito não conseguem medir uma quantidade tão reduzida de álcool.

 

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