Câmara
em directo de Cannes
Por Vasco Câmara
Sábado, 19 de Maio de 2001
Isabelle Huppert, a favorita
Já
foi dito que a pianista que Isabelle Huppert faz em "La Pianiste",
de Michael Haneke, é a personagem "mais hard" que a actriz
alguma vez fez.
Ao dizer isto da intérprete que é a perversa habitual dos
filmes de Claude Chabrol dá-se uma ideia - mas uma ideia,
apenas - das vertigens que ela causa no filme de Haneke.
É uma professora do conservatório de Viena, dedicada à sua
música, mas castrada nos seus sentimentos. O escape é o ritual
das lojas de porno e rituais da auto-mutilação. Huppert ousa
tudo, ousa perder-se de si própria, como se fosse uma experiência
erótica adulta e, simultaneamente, como se tivesse encontrado
refúgio no mundo imaginário infantil. "É a maior actriz da
Europa e se calhar do mundo", disse Haneke.
É a grande interpretação do festival, mas pode ser prejudicada
pelo facto de o filme ter provocado reacções extremas, de
adesão e de recusa - não se esquecem tão depresa os risos
histéricos, de nervosismo, na sessão de imprensa.
Jeanne
Balibar, a pretendente
Com
o seu corpo interminável e insolente (e a voz irresistivelmente
grave), Jeanne Balibar seria ideal para fazer de Olivia Palito
numa versão francesa de "Popeye". Mas teria de ser uma "versão
de autor". Interpreta um actriz em "Va Savoir", e o realizador
Jacques Rivette assiste extasiado às suas movimentações. Ao
passar da "Comédie Française" para o cinema, ao intérpretar
filmes como "Comment je me suis disputé", de Arnaud Desplechin
(inédito em Portugal), ou "Odeio o Amor", de Laurence Ferreira
Barbosa, Jeanne Balibar definiu uma personagem singular do
cinema francês, moderna e clássica, uma espécie de "clown"
intelectual. Por causa dela, também, "Va Savoir" é um filme
transbordante. E como é um filme caloroso, em tudo oposto
à frieza de "La Pianiste", Jeanne pode sair favorecida dos
"arranjos" de palmarés.
Michel
Piccoli, o favorito
"Vou para Casa" deixou marcas fortes em Cannes, seduziu espectadores
que não podiam estar mais distantes do universo de Manoel
de Oliveira, e acaba por ser natural que o filme figure no
palmarés final. Seria justo se isso acontecesse através de
Michel Piccoli, na figura de um velho actor que, depois da
morte da família num acidente, decide dizer "não" aos compromissos
da vida e anunciar: "Vou para casa!". O sortilégio da presença
de Piccoli - num papel que, segundo ele, não sabe dizer ainda
hoje se não será, de facto, ele próprio - tem a ver com o
encantamento mútuo entre o actor e Oliveira, como se uma troca
de experiências e de olhares acontecesse entre uma figura
paterna (Oliveira, o realizador) e um "filho" (Piccoli, o
actor).
Léonid
Mozgovoi, o pretendente
Tem
sido o escolhido pelo realizador russo Alexandre Sokurov para
protagonizar a série de filmes crepusculares que o cineasta
vem dedicando aos grandes ditadores. No ano passado foi Hitler,
em "Moloch"; agora é Lenine, em "Taurus". O Lenine de Mozgovoi
é um homem doente, senil, um quase-cadáver. Tal como o Hitler
de "Moloch", o trabalho do actor aqui é meticuloso, e abre-se
à devassa da câmara. Um prémio de interpretação seria a forma
de premiar a colaboração com Sokurov (e, aliás, todo o projecto
de filmes em que o cineasta quer captar o momento em que a
consciência do falhanço desceu sobre aqueles que antes se
deixaram enebriar na orgia do poder).
Billy
Bob Thornton, o pretendente
Se
Cannes quiser agradecer a - sempre ambicionada, mas muitas
vezes dificultada por Hollywood - presença americana na competição,
pode dar um prémio ao filme de animação "Schrek". Ou então
premiar a interpretação do músico (acabou de gravar um disco,
segundo ele, no espírito de Leonard Cohen e Kris Kristofferson)
e actor Billy Bob Thornton. Em "The Man who wasn't there",
dos irmãos Coen, ele é um barbeiro, e aparentemente é o falhado
de um triângulo amoroso, aquele que a mulher abandona pelo
amante. Billy Bob diz que gosta de papéis assim: à partida
estúpido ou ignorante, mas com uma riqueza interior insuspeitável.
O seu laconismo, que dá à personagem a dimensão de uma presença
abstracta, é a própria imagem do cinema dos Coen: distanciado,
impassível, à beira da asfixia.
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