Câmara
em directo de Cannes
Por Vasco Câmara
Sábado, 12 de Maio de 2001
"Shrek", ou os contos de fada já não
são o que eram
Ainda
começa como "era uma vez", mas depois a princesa arrota e
deve ter visto algures cinema de Hong Kong porque consegue
suspender-se no ar durante um ataque, e o dragão que a mantém
sequestrada na torre é uma "dragona" que vai apaixonar-se
por um burro.Pior: o herói é um
ogre verde, e o "príncipe" do conto de fadas, o "dono" deste
reino, é um pequenitotes (segundo as más línguas, é por alguns
complexos que manda construir castelos tão fálicos...) que
odeia personagens de contos de fadas, dos anões aos três porquinhos...
"Shrek" é, depois de "Antz- A Formiga
Z", mais uma colaboração entre a Dreamworks e a Pacific Data
Dreams, nesta nova demanda pelo "Santo Graal" que é a animação
por computador - e em mais um duelo com a Disney/Pixar (os
de "Toy Story"). Nesta área em que se abriu a competição,
os especialistas dizem que a última novidade permanecerá a
última novidade durante 10 minutos. É esse o tempo para se
fazerem desfilar as proezas técnicas.
No caso de "Shrek", 450 personagens
animadas, 28 mil árvores cobertas de 3 mil milhões de folhas,
ou, pela primeira vez na animação por computador, personagens
humanas com penugem e cabelos que parecem "reais". Isso durará
10 minutos, mas "Shrek", primeira realização de Andrew Adamson
e Vicky Jenson (exibida em competição), ficará por mais algum
tempo. A DreamWorks tem como programa tirar o género do gueto
infantil, e consegue mais uma vez, num terreno tão saturado
de códigos, dar a sensação que há um todo mundo a reinventar.
É o que "Shrek" faz ao conto de fadas
(tudo do avesso...embora depois tudo como no conto de fadas),
com humor e algumas incursões arriscadas na comédia sexual
e uma primorosa caracterização de personagens. Parece que
são de carne e osso a princesa estouvada (Cameron Diaz), o
ogre incompreendido (Mike Meyers) ou o asno lamuriento (Eddie
Murphy).
"Huis clos"
a céu aberto
Duas
mulheres num confronto de amor e psicose em Paris e um bósnio
e um sérvio no teatro de guerra. Ambos (em competição) a céu
aberto, mas como se fossem dois "huis clos"."La
Répétition", da francesa Catherine Corsini (a realizadora
de "A Nova Eva") junta Emmanuèlle Béart e Pascale Bussières,
uns pozinhos pretensiosos de Teatro (a primeira é actriz),
uma insinuação de "thriller psicológico" (a segunda, no fundo,
quer possuir a primeira), um rasto psicanalítico, um final
em despique amargo, e o resultado não pode deixar de ser "tipicamente
francês" - isso aqui quer dizer que o filme parece ir a todo
o lado, mas não chega a lado nenhum.
"No Man's Land" (competição) sabe bem
para onde quer ir: a farsa, pura e crua. É a primeira longa-metragem
de um documentarista bósnio, e foi produzido pela Fábrica
da Benetton (que, no ano passado, trouxe a Cannes "O Quadro
Negro", de Samira Makhmalbaf). É um filme de caricatura feroz.
Ponto de partida: durante o conflito, um bósnio e um sérvio
encontram-se num "no man's land" de uma trincheira. Ao pé
deles têm um corpo que se arrisca a tornar-se cadáver: um
homem deitado em cima de uma mina que rebentará ao mais pequeno
movimento.
Tudo se histeriza em torno desta paralisia
central, mas o bósnio e o sérvio ainda são os que têm motivações
menos torpes: a imprensa e a ONU (o que é que fizeste na guerra,
Europa?, podia ser o título da farsa) saem de rastos. É demagógico.
E com a ideia, simplista, de opor as "pessoas simples" (os
soldados) ao demónio das organizações. Cinematograficamente,
não é totalmente desinteressante: põe a farsa a coser na lentidão
do sol e do calor, que o filme capta. Foi a maior ovação que
se ouviu por aqui.
Makhmalbaf
no país do Buda destruído
Diz-se
que quem telefonar para os escritórios do realizador Moshen
Makhmalbaf, em Teerão, a pedir informações sobre o seu último
filme, "Kandahar" (competição), vai receber 53 páginas de
um documento intitulado: "O Buda não foi demolido no Afeganistão
- Ruiu devido à Vergonha". Vergonha,
porque com toda a sua grandeza não foi capaz de fazer algo
pela ignorância do mundo em relação ao Afeganistão.
Em contrapartida, Makhmalbaf quer que
o espectador não perca nada sobre a fome, a condição da mulher
e a morte no Afeganistão. Por isso fez um filme. Rodado em
condições difíceis (ameaças de sequestro e morte) nas fronteiras
do Afeganistão com os países vizinhos e mesmo em campos de
refugiados dentro de território afegão, "Kandahar" é uma ficção-documental.
Makhmalbaf partiu de histórias reais (os figurantes são refugiados)
para contar esta deriva de uma jornalista afegã refugiada
no Canadá que regressa porque a irmã lhe escreveu uma carta:
ameaça suicidar-se no último eclipse do Sol do século, não
aguenta mais a situação das mulheres no país.
A jornalista vai tentar atravessar a
fronteira Irão/Afegão para chegar a Kandahar antes do eclipse.
Até lá (nuca saberemos se entra no país), Makhmalbaf organiza
motivos pictóricos visualmente fortíssimos (pernas postiças
vindas do céu, atiradas de para-quedas sobre o deserto para
as vítimas das minas) para denunciar uma realidade humana
e social. Cada um deles é uma peça numa engrenagem militante
e didáctica. Há um esforço de organizar o material documental
como narrativa iniciática e poema visual e pícaro. O resultado
é artificioso e artificial. "Kandahar" é assumidamente militante,
cinematograficamente programático. Mas será relevante, face
ao poder da denúncia, considerá-lo dos filmes menos interessantes
do cineasta?
Quem receber o documento de 53 páginas
da casa de produção de Makhmalbaf, vai ler que apreender as
informações nele contidas "demora cerca de uma hora, tempo
em que no Afeganistão morrem 14 pessoas, devido à guerra e
à fome, e 60 outras se tornarão refugiadas". E há um conselho,
desassombrado: "Se este assunto é demasiado amargo para as
vossas vidas, por favor pare já de o ler". Um favorito para
um prémio no Palmarés? 
CÂMARA EM DIRECTO DE CANNES
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de Maio >>

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