Câmara
em directo de Cannes
Por Vasco Câmara
Sexta-feira, 11 de Maio de 2001
A família Coppola
Coppola
não diria "não" a um projecto autobiográfico à altura da sua
fama de "Sultão de S. Francisco" - "Ayatollah Coppola" ou
"Mussolini da Baía" são outros títulos com que o coroam em
Pacific Heights, onde tem uma casa com vista para a baía.
Mas como diz que nunca olha com nostalgia para o passado (há
por lá glórias e misérias suficientes para uma ópera), afirma
que o seu projecto mais ambicioso é o próximo, "Megalopolis".
Fala nele há 15 anos, é a história de
um homem que quer construir a cidade utópica, e se o rodar
- "espero que no próximo Outono" - diz que esse filme dirá
mais sobre ele do que todos os outros juntos. Portanto, haverá
mais dados para acrescentar à loucura e insensatez (como o
Kurtz de "Apocalypse Now"), à frieza determinada (Michael
Corleone de "O Padrinho") ou a generosidade condenada à perda
(o Tucker de "Um Homem e o seu Sonho").
Coppola não está em Cannes só com "Apocalypse
Now". Está também como produtor de Hal Hartley, que na secção
Un Certain Regard apresenta "No Such Thing". E está também
através da família, e ninguém se espantará se não chegar a
filmar "Megalopolis" e o cinema começar a ser, para ele, assunto
dos filhos. Há família Coppola em Cannes em mais dois filmes.
Roman, o filho, tal como Sofia, a filha, cresceram nas rodagens
dos filmes do pai (os dois eram miúdos quando viveram a turbulenta
experiência de "Apocalypse Now" nas Filipinas, e Roman é figurante
na sequência da Plantação Francesa, ao lado do irmão Gio,
que morreu anos depois num trágico acidente). Estiveram em
alguns filmes do pai (não porque quisessem ser actores, como
poderá dizê-lo Sofia em relação à sua tão criticada passagem
por "O Padrinho III", mas porque era uma coisa natural de
fazer, entrar num filme).
Agora, Roman, que deu uma ajuda à irmã
em "Virgin Suicides" - e fuma charutos como o pai -, apresenta
a sua estreia na realização, "CQ". É uma fantasia sobre o
cinema - uma equipa, nos anos 60, roda um filme de ficção
científica em Paris -, é uma homenagem à geração do pai e
um dos objectos "fétiche" do filme é um fétiche de Francis:
um Citroën DS. Roman, em princípio, "herdará" também um projecto
antigo do pai, "On the Road", baseado no livro de Jack Kerouac.
Depois há Spike Jonze, que é o companheiro
de Sofia e o amigo de Roman. "Wonder boy", o sogro deve rever-se
nele.Spike colaborou com Roman
na rodagem de "CQ" mas o seu nome está em Cannes na qualidade
de produtor de "Human Nature", o primeiro filme de Michel
Gondry, o autor de videoclips - um dos "criadores", afinal,
de Björk. "Human Nature" é uma "comédia biológica" em que
uma naturalista e um investigador encontram um homem-macaco
que vai perturbar a sua relação, e durante muito tempo foi
considerado um brilhante, mas infilmável, argumento de Charlie
Kaufman. O mesmo que escreveu "Queres Ser John Malkovich?"
e "The Adaptation", que Jonze está a filmar e que é interpretado
por Nicolas Cage - já agora, sobrinho de Francis Coppola.
E falta Eleanor, a discreta mulher de Francis.
Nas suas memórias, confessou que sempre
se apagou perante o "ayatollah". Olhou-o, através de uma câmara,
e com um misto de encantamento e temor, durante a rodagem
de "Apocalypse Now". Fez um diário de imagens, numa altura
em que um filme quase destruiu o seu casamento. Ontem, enquanto
Francis era aclamado pela imprensa, Eleanor, no meio dos jornalistas,
tinha na mão uma câmara de vídeo.
Números
& factos de "Apocalypse Now"
A
rodagem (nas Filipinas, em 1976) era suposto durar quatro
meses, mas prolongou-se por 15. No total, Coppola filmou 370
horas de película em 238 dias. Uma produção "normal" americana
tem um tempo de rodagem de 55 dias. A pós-produção, que dura
seis meses, nos casos mais complicados, durou mais de dois
anos. A estreia esteve marcada, sucessivamente, para 1977,
Maio de 1978 e, finalmente, 1979, durante o Festival de Cannes.
"Apocalypse When?", "Apocalipse Quando?" foi a frase mais
usada pela imprensa americana durante a produção do filme,
cheirando o "odor" a fracasso.
Coppola propôs
o papel de Willard, o oficial que sobe o rio à procura do
demente Kurtz, a Steve McQueen. Este recusou, não querendo
ficar tanto tempo fora dos EUA. Al Pacino disse, também, "passo",
lembrando-se da experiência em "O Padrinho II", concretamente
nas sequências rodadas na República Dominicana, que o levaram
à cama, doente. Jack Nicholson, James Caan e Robert Redford
recusaram também, mas Harvey Keitel disse que sim. Chegou
a filmar três semanas, mas quando Coppola viu as "rushes",
considerou que Keitel não correspondia às expectativas. Substituiu-o
por Martin Sheen, que haveria de sofrer um ataque cardíaco
quase fatal (um padre chegou a dar-lhe os "últimos sacramentos").
Para não parar os trabalhos, Coppola mandou chamar o irmão
de Sheen às Filipinas para o utilizar como "duplo" enquanto
Martin recuperava.
Quando Marlon Brando
chegou às Filipinas, ninguém esperava que apresentasse tamanha
envergadura física. Marlon sentia-se vexado, ameaçou várias
vezes abandonar a rodagem e, sobretudo, nenhum dos uniformes
preparados pelo departamento de guarda-roupa lhe serviam.
Por isso foi tomada a decisão de o filmar só do peito para
cima - evidenciando a sua cabeça careca de Buda, sempre na
escuridão, que é hoje um dos ícones de "Apocalypse Now".
Três meses depois
da rodagem começar, o maior furacão que tinha atravessado
as Filipinas em 40 anos chegou à rodagem de "Apocalypse Now".
A produção "fechou" durante seis semanas até a chuva parar
- chuva tão intensa que não se via a mão a um palmo de distância
- e depois de serem reparados os estragos no cenário concebido
por Dean Tavoularis. É nesta altura que Eleanor Coppola, a
mulher de Francis, que filmava a rodagem com uma pequena câmara,
fazendo um diário, olha para o seu marido encontrando o paralelo
entre a loucura de Kurtz, a personagem de Brando, e o marido.
Essas imagens, e esse olhar, foram integradas num documentário,
"Hearts of Darkness, A Filmaker's Apocalypse".
Dezaseis milhões
de dólares era o orçamento inicial de "Apocalypse Now".
Trinta e dois milhões de dólares foi o orçamento final. Coppola
hipotecou todos os seus bens pessoais para cobrir o excesso.
Depois da estreia, o "fracasso" anunciado revelou ser um sucesso:
rendeu três vezes mais do que o custo. E "Apocalypse Now"
aparece em 28º lugar na lista dos 100 melhores filmes de sempre
elaborada por 1500 personalidades convidadas pelo American
Film Institute.
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