"O Caçador"
Por Raquel Ribeiro
JuQuando se fala em "O Caçador" (1978), de Michael Cimino, a primeira coisa que vem à cabeça, de quem já o viu, é o jogo da roleta russa. Grande plano de Christopher Walken de lenço vermelho na cabeça, grande plano de Robert De Niro de lágrimas nos olhos, revólver em punho, ora um, ora outro, dezenas de vietnamitas histéricos a apostar, em dólares, em quem se safa naquele jogo diabólico - um clique, um clique, um tiro.
Quase ninguém se lembra do antes e do depois da guerra. Quase ninguém se lembra que há três amigos, Michael (De Niro), Steven (John Savage) e Nick (Walken), de uma comunidade imigrante russa nos EUA, que trabalham numa fábrica de aço e cujo passatempo favorito é caçar veados - daí o título "O Caçador" ("The Deer Hunter").
E há ainda outros amigos na fábrica: Stan (John Cazale - lembram-se do Fredo na saga do "Padrinho" I e II, de Coppola?), John (George Dundza) e Axel (Chuck Aspegren). Michael, Nick e Steve vão para a guerra. Os outros ficam.
O sol é coberto por uma nuvem negra. Mike diz: "É uma benção do caçador enviada pelo grande lobo. Coisas de índios." Mas é também um presságio.
- Se a minha vida tivesse de acabar nas montanhas, seria bom. Mas teria de ser na cabeça. (diz Mike)
- O quê? Um tiro? (pergunta Nick)
- Dois é mariquinhas...
- Já não penso muito num tiro só, Mike.
- Tens de pensar apenas num só tiro. Um tiro é tudo. O veado tem de ser abatido com um tiro.
Nessa noite, Steven casa com Angela. E, depois do casamento, os outros vão caçar veados. De repente, já estamos no meio do pesadelo da guerra. É a descida ao Hades: Nick, Steven e Mike são prisioneiros dos vietcongs.
- O nosso lugar não é aqui! (grita Steven)
No primeiro jogo da roleta, a bala entrou-lhe na cabeça por um lado, mas saiu por outro. Mais tarde, cairá de um helicóptero e ficará paraplégico. Steve perde as pernas, Nick perde a memória. E Michael, o que perde?
Vietname, uma ferida
Já não se fazem filmes sobre o Vietname há alguns anos. Obras sobre a I e a II Guerra Mundial multiplicaram-se pelos anos 90. Sobre o Vietname, nem por isso. No rescaldo do conflito, no final dos anos 70, fizeram-se filmes como "Coming Home", de Hal Ashby (1978), "The Boys in the Company C", de Sidney Furie (1978), "O Caçador" (1978) ou "Apocalipse Now", de Francis Ford Coppola (1979).
Foi sobretudo na "convalescença" da década de 80 que alguns dos mais importantes realizadores norte-americanos (e alguns, como Oliver Stone, estiveram na guerra) trouxeram a Hollywood outras visões do conflito, algumas amplamente polémicas, quase todas "arrasando" com a imagem dos americanos: Oliver Stone com a trilogia sobre o "Nam", "Platoon" (1986), "Nascido a Quatro de Julho" (1989) e "Quando o Céu e a Terra Mudarem de Lugar" (1993); Stanley Kubrick com "Full Metal Jacket" (1987); ou Brian de Palma com "Corações de Aço" (1989).
O que sentia a juventude americana durante a guerra, o conflito em si, o pós-guerra, a visão dos americanos ou a visão dos vietnamitas são alguns temas abordados. Mas os anos 90 foram parcos em filmes sobre um dos conflitos mais humilhantes para os EUA. Será que o Vietname continua a ser tabu? Ou, tendo em conta os filmes que já se fizeram sobre ele, será uma ferida já fechada na sociedade americana? Não haverá mais nada para dizer? Ou a ferida não se fechará nunca?
Ora, "O Caçador" impõe algumas diferenças em relação a outros filmes sobre o Vietname. É curiosamente considerado um dos melhores filmes de guerra de sempre, mas pouco tempo se passa nas florestas densas daquele país asiático. Por exemplo, em "Apocalipse Now" estamos dentro do conflito: fazemos surf ao som das "Valquírias" de Wagner com Robert Duvall, sentimos o cheiro do "napalm" pela manhã, vamos rio acima com Martin Sheen até ao santuário de horrores de Marlon Brando no Cambodja. Em "O Caçador", pelo contrário, há um antes, um durante e um terrível depois. Todos eles longos e significativos, determinantes. Porque podemos saber o que eles eram, por que passaram, no que se tornaram. E essa metamorfose - que muda a vida e o comportamento dos personagens para sempre - é horrível, violenta, arrasadora. Neste caso, o Vietname de Mike, Steven e Nick (e o de todos que eles tocaram) é uma ferida por sarar.
Ganhar ou perder na roleta russa
Depois da guerra, Michael regressa a casa e conquista Linda (Meryl Streep, que recebeu uma nomeação para o Óscar de melhor actriz secundária), a namorada de Nick, que ficara no Vietname. Michael ganha então a possibilidade de estar vivo. E ganha também o regresso a casa, as medalhas que mostra com orgulho no peito, a boina que não tira nunca. Exibe-se como um vencedor - mas que espécie de vitória é essa?
Depois da guerra, Mike não consegue matar o veado. Fita-o nos olhos como o fizera com Steven na primeira roleta e depois com Nick, na última e irreversível, quando faz dezoito mil quilómetros para o ir buscar, ao fundo do poço, numa casa em Saigão onde vietnamitas jogavam à roleta russa. "Um tiro?", pergunta Nick, que já não o reconhece. Michael responde: "Um tiro." E só um saiu vivo.
Meses antes, na noite de caçada, conversavam:
- Achas que algum dia vamos voltar, Nick? (pergunta Mike)
- Do Vietname?
- Tudo o que me interessa está aqui. Se alguma coisa me acontecer, não me deixes lá. Tens de me prometer.
Michael prometeu. Mas não foi suficiente. Na guerra (naquela guerra), nenhum esforço é suficiente. Jogou à roleta com Nick - e ganhou. |