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SerieY 3
"E a tua mãe também"
 

"E a tua mãe também ", de Alfonso Cuarón, na Série Y
Por Vasco T. Menezes

Masculino/Feminino
Dois rapazes e uma mulher mais velha atravessam o México em busca de uma praia mítica. “E a Tua Mãe Também”, relato nostálgico do fim de um tempo, a adolescência, é o filme que Alfonso Cuarón gostaria de ter feito quando ainda não sabia fazer cinema. Caloroso e sedutor.

 

 

 

“Flashback”: Verão de 2001. No México, um filme nacional “para adultos” – afinal, tinha-lhe sido imposta a classificação X, carimbo normalmente reservado a material pornográfico ou “escandaloso” – batia recordes na bilheteira e adquiria estatuto de “fenómeno sociológico”. Aos que exibiam receios puritanos perante o turbilhão de “E a Tua Mãe Também” – jovens, sexo, drogas, circulação de corpos –, respondiam os adolescentes, ameaçando despir-se em frente às salas de cinema se alguém, polícia incluída, resolvesse impedi-los de assistir às sessões.

 

 

E a razão para tal entusiasmo não parece complicada: muito provavelmente, os admiradores juvenis do filme reviram-se, de algum modo, nele, como se tivessem aí encontrado algo de “autêntico” que possibilitasse uma sensação de proximidade que a hipocrisia e o moralismo da maioria dos “teen movies” americanos impediam. Um olhar refrescante, portanto. E, acima de tudo, surpreendente, por não corresponder a nada do que se poderia esperar do seu autor, Alfonso Cuarón.

 

 

Com efeito, o que ficara para trás na carreira deste mexicano radicado nos EUA não dava para muitas celebrações. E polémica, nem vê-la, pois tanto “Little Princess” como “Grandes Esperanças” (modernização particularmente infeliz do clássico de Charles Dickens) se inscreviam como mera rotina industrial, não permitindo sequer que à sua volta se construísse uma bipolarização acentuada de opiniões. Logo, o mais fácil seria ver em Cuarón mais um exemplo de um cineasta estrangeiro que sente o talento ser sufocado pela máquina de Hollywood e opta por regressar a casa, para se retemperar de más experiências. Nada de mais errado, como o próprio confirmou por diversas vezes, ao assegurar que na América gozou de toda a liberdade desejada.

 

 

 

Regresso às raízes

Sendo assim, talvez a melhor maneira de abordar este retorno a casa seja pelo prisma de uma tentativa (já agora, plenamente conseguida) de resgate da inspiração. Aliás, Cuarón confessou mesmo: “Precisava de regressar e fazer um filme mexicano, com personagens mexicanas e em chilango, que é o calão da Cidade do México, e também de regressar às minhas raízes criativas. Queria fazer o género de filme que teria adorado fazer quando andava na escola de cinema, que teria gostado de fazer quando ainda não sabia fazer cinema”. Ou seja, “E a Tua Mãe Também” posiciona-se quase como um “mea culpa” (em princípio, episódico: segue-se “Harry Potter and the Prisoner of Azkaban”...), como se o realizador se penitenciasse por não ter assumido anteriormente riscos e procurasse reencontrar a energia, entretanto perdida, dos tempos de principiante.

Daí o deslumbramento que se sente no filme e a vontade expressa de ir contra regras preestabelecidas, o desejo de tornear o óbvio e previsível. De resto, não será por acaso que Cuarón convocou como referências objectos revolucionários como o “Masculin Féminin” de Godard ou o “Jules e Jim” de Truffaut. Como neste último, é de um trio amoroso que se fala, mas que aqui envolve uma mulher mais velha – por isso, logo na cena inicial, surge um cartaz de um clássico de culto da “Nova Hollywood” dos 70's, “Harold e Maud”, de Hal Ashby, em que o jovem Bud Cort iniciava uma relação com Ruth Gordon, uma velhota de 80 anos. Então é assim: dois rapazes de 17 anos, Julio e Tenoch (fenomenais Gael García Bernal e Diego Luna), sem as namoradas (partiram de férias para a Europa), vivem o Verão na Cidade do México, por entre festas desmioladas e outras tropelias próprias da idade. Mas depressa ao frenesim se segue o tédio, que só é afastado quando conhecem Luisa (Maribel Verdú), uma espanhola de 30 anos por quem se deixam fascinar. E a possibilidade do “engate” ganha corpo quando a convencem a acompanhá-los numa viagem através do país, à procura de uma praia (aparentemente) imaginária, Boca del Cielo.

 

 

Quer isto dizer que tal como a comédia urbana (próxima dos moldes típicos de um qualquer “filme de adolescentes”) vai dar lugar ao “road movie”, também o retrato de um país cosmopolita e desenvolvido se transforma num olhar melancólico sobre o México profundo, cenário de uma beleza selvagem mas degradada e território (que em incontáveis ficções, “westerns” em especial, se instituiu como espaço de liberdade) dilacerado pela pobreza e pelas convulsões oriundas das barreiras de classes. É este país que os três protagonistas, ao longo da sua travessia, vão descobrir e ter de enfrentar, preferindo primeiro ignorar o óbvio (enquanto se mantêm dentro do carro, espaço fechado e impermeável ao que se passa lá fora), para acabarem por se abrir ao exterior, ao contacto com as gentes desfavorecidas e vitimizadas.

 

 

Um filme-romance com a morte sempre presente

Mas os ecos políticos e sociais de “E a Tua Mãe Também” chegam ao espectador muito antes, graças àquele que é o grande trunfo do filme: o dispositivo da voz “off”, que não só nos vai dando, em pequenos apontamentos, pormenores da situação estilhaçada do país, como nos permite aceder a elementos, passados e futuros, que de outro modo não conheceríamos. A história principal suspende-se vezes sem conta, polvilhada por uma miríade de outras histórias que a desviam e interrompem e parecem corresponder a um desejo sôfrego de contar. De tal forma que, durante as inúmeras intervenções do narrador omnisciente, o som é abafado e a voz neutra se sobrepõe aos diálogos, conferindo assim a esta calorosa crónica de aprendizagem sexual uma inusitada dimensão literária.

 

É o que mais impressiona no filme, mas não será apenas isso que lhe confere um charme particular. A toda a sua carga “subversiva” – é Luisa, a suposta “presa”, quem controla e conduz o jogo do sexo, expondo as fragilidades dos pseudo-machos e fazendo-os confrontar sentimentos nunca antes assumidos –, acresce ainda o modo como, numa obra a transbordar de vida, atravessada pela criação de ambientes de uma sensualidade palpável, se vai instalando, subtil e progressivamente, a presença da morte. Os sinais de perda repetem-se obsessivamente – dos túmulos à beira da estrada à doença terminal de Luisa, passando pelo episódio do acidente que matou o seu primeiro namorado ou o funeral com que os viajantes se cruzam –, a prenunciar a separação do par de amigos. Um tempo e uma amizade chegam ao fim, e em seu lugar resta apenas a memória da inocência perdida no último Verão da adolescência.